domingo, março 05, 2006

O esmaecer das cores


Como quem aguarda, deitado num banco envelhecido na estação de comboios, como quem lê um livro de pernas cruzadas na relva, como quem trinca uma maça enquanto ao lado a paisagem corre e a estrada corre e os ocres das paredes e as vinhas bem formadas nas encostas mancham o olhar, como quem, sentado numa cadeira, de pernas estendidas, ouve a rega e ouve a sua frescura pelo pátio adentro, eu aguardo, eu leio, eu mordo-me de curiosidade, eu escuto o amanhã. A fingir-me ausente, a captar com voluptuosidade o ancorar das cores nos meus olhos, do negro sobre o branco sobre o caprichoso cinza, a prestar atenção ao que dizem, a decorar com afinco a sua certeza e a sua energia. Fico, assim, em forma de desmaio interrompido, à espera que aquela névoa venha cair em cima da sombra e a transforme num sibilo semelhante ao que as lembranças fazem quando as vamos buscar ao fundo do corpo. Como quem ignora um sítio, as suas imperfeições e os seus humores, como quem tapa os ouvidos, se desprende do ruído circundante e prepara a pele para recolher a quantidade certa de luz.
E eu queria que isso durasse muitas horas, muitas viagens, muito tempo.

Os salteadores modernos


Coloco esta mensagem no sítio de uma instituição bancária mas presumo que ninguém a vá ler, uma vez que a colocação da mesma não lhes oferece nenhum retorno financeiro, mas não resisto em mostrar aqui o meu lamento, em jeito de grito de revolta. É ultrajante a cobrança pela visualização de cheques, disponibilizada por algumas instituições bancárias, através dos seus onerosos websites. Já não basta pagarmos uma enormidade de taxas, impostos, tributos, percentagens e outros métodos obscuros do género por todos os serviços inerentes à conta e à emissão dos ditos cheques e ainda temos que pagar um euro e meio se os quisermos visualizar on-line. Cheques que são, com quase toda a certeza, facilmente digitalizados e colocados no sistema para consulta.
Não, há que sugar até ao tutano o pobre trabalhador. Há que tornear a moralidade e extrair ao povo todos os tostões que podiam devolver alguma dignidade à sua vida, já de si, custosa.
Senhores gestores e representantes bancários, sinceramente, não acham isto tudo uma extorsão descarada? Ainda por cima vocês não roubam para comer. Vossas excelências saqueiam impunemente apenas para prolongar o estado de opulência em que se encontram.
Assim, também tenho milhões e milhões de lucro no final do ano. Assim, também eu pago afrontosas quantias para fazer anúncios publicitários, para patrocinar os três grandes clubes de futebol e para pagar os BMWs dos senhores directores.
Haja decência, por favor, haja alguma decência.

terça-feira, fevereiro 28, 2006

Por outro lado (por muitos anos, por favor)


Ana Sousa Dias sabe escolhê-los muito bem. Em cada convidado um mundo de histórias, trejeitos, expressões, informações, humor, inteligência. Excelência. Aquilo que ela e os seus convidados fazem é muito mais que serviço público. Abrir tantas divisões de uma casa encantada aos espectadores daquela maneira tão simples e tão fascinante é uma forma de arte. Não são só os convidados, cada um com a sua experiência e capacidades peculiares, não é apenas o abarcamento em forma hipnótica com que cada conversador envolve quem ouve e assiste. O rosto sereno de Ana Sousa Dias, o seu tempo de espera e o manuseamento perfeito da conversa são os pilares sólidos que fazem de Por outro lado uma dádiva televisiva rara. Perco o fôlego só de imaginar uma colecção de DVDs com todas as conversas / momentos de arte deste programa. E depois penso no esbanjamento de dinheiro e de tempo em programas de conteúdo inútil. Penso nas oportunidades e na visibilidade do lixo, da desinformação, do regredir, da escória televisiva que abunda neste país. Filmes de pancada, telenovelas, telejornais amplificadores da inutilidade, concursos de dinheiro e (electrodomésticos) fáceis, as galas de prémios fúteis. O histerismo de uma sociedade moribunda.
Mas, enquanto existirem Por outro lado e Ana Sousa Dias (e os seus convidados) haverá esperança. Um dia, algum produtor executivo num qualquer canal vai ter coragem. Vai acordar, numa manhã de sol escondido, vai carregar num botão e fazer correr os estores automáticos do seu apartamento de luxo e vai tomar a decisão, ainda acamado no seu roupão de cetim. Esse director que, no fundo, sentencia o que o povo absorve e o seu estado de erudição, vai lançar-se para além do dinheiro e das audiências e vai entregar o protagonismo merecido e salvador a um programa como este.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Philip


Quem ainda se lembra de Scotty J. (Boggie Nights, 1997), quem se lembra de Brandt (The big Lebowski, 1998), quem se arrepia quando se lembra de Allen (Happiness, 1998) e de Phil Parma (Magnólia, 1999), quem o viu trajado de Freddie Miles (The talented Mr. Ripley, 1999) ou de Jacob Elinsky (25th Hour, 2002), sabia perfeitamente que era uma questão de tempo. Aquele talento todo tinha que explodir e tornar-se memorável. Quem acompanha o dom de Philip Seymour Hoffman através dos filmes que fez, ao longo destes anos todos, tinha a certeza que este dia chegaria. O da visibilidade e reconhecimento mundiais. Finalmente, o brotar da sua extraordinária capacidade de representação, à vista de todos os que amam o cinema. Nem era preciso ir ver Capote para saber que este ano só por politiquices ou outro tipo de interesses lhe escapará o Óscar para melhor Actor.
A grandeza do cinema é feita de actores assim.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Este rei não vai nu


Fez, este mês, um ano que o alcancei. Quando apareceu nem quis acreditar. Li o contrato de fio a pavio e as entrelinhas, de lupa na mão. Obriguei pessoas amigas a lerem o contrato de fio a pavio, fi-las pegar na lupa e forcei-as a esmiuçar todas as letras miúdas que pudessem encontrar. Depois de demorada investigação cheguei à conclusão simples de que este Rei não é de cá. Não pode ser um autóctone como nós.
Fui a medo. Sentei-me na cadeira, em frente à menina que recebia os incautos. Os que queriam ver o Rei. Os que queriam ter o Rei, assim é que é mais correcto de se dizer. Sentado em frente à cachopa, que escrevia, li pela última vez o contrato. Tinha a caneta ao lado, cheia de tinta preta, já com a tampa fugida. «Este Rei está louco», pensei eu, a meio de um sorriso trémulo, atirado à menina. «Não pode ser, tanta generosidade, não existe». Penso mesmo que cheguei a soltar uma frase com sonoridade semelhante. Não tive outra escolha. Baixei a folha do contrato e das letras pequenas, afaguei a lupa no bolso do casaco e perguntei, ao estilo de um soldado em plena emboscada: «Isto é verdade? Posso ir ver os filmes todos que quiser? Posso ver dois filmes por dia? E só custa treze euros por mês? Não são trinta? São mesmo treze?» No fim da rajada, a menina, orgulhosa da criação que o seu amo e Rei se dispôs a fabricar e logo depois a oferendar ao seu povo, disse: «Sim, tudo isso é verdade. O cartão Kingcard custa treze euros por mês. Pode ver até dois filmes por dia e, se quiser, vê-los mais que uma vez, noutros dias.» Eu, ainda meio zombo, abri outra vez o alçapão e continuei com a minha sagacidade de atirador bem afiada. «Não há aqui algo escondido, minha senhora? Vou assinar isto e depois fico agarrado com qualquer alínea que me possa ter escapado? Ninguém dá nada a ninguém. Isto, a ser como diz, é bom demais para ser verdade. É que, sabe, para quem ama cinema como eu, para quem se alimenta da riqueza das imagens, dos argumentos, das histórias, das personagens, como eu, isto não é um cartão, é uma caverna recheada de estatuetas douradas.» Lendo nos olhos da moça que a verdade estava dentro dela, terminei o discurso do incrédulo e, finalmente, peguei na caneta e assinei. De um assomo com tal intensidade que a assinatura pouco se assemelhava à que está no bilhete de identidade.

À manhã


É verdade que as cidades engolem as pequenas aldeias. É verdade que os dialectos nas aldeias são dialectos alienígenas para os citadinos. É verídico que os temores e as dificuldades entre as pessoas da aldeia são os mesmos que enfrentam as pessoas na cidade. Se eu pudesse voltar atrás, àquela sombra amena, sob o manto verde de folhas e de ideias. Sentar-me, encostar a cabeça no tronco da árvore e assistir à corrida de nuvens, naquele oblongo céu azul. Mas não consigo evadir-me e chegar tão longe. Não me consigo libertar deste ressoar de gente e desta cidade em forma de maleita. Pelos meus passos, pela minha pele eriçada, pelos meus ombros que se empapam de ruído, eu esmoreço. Farto desta sujidade, desta língua de imundície, que se separa com afoiteza do buraco onde grela e vem ocupar o meu silêncio, as minhas indagações à conta da vida. Por isso, fujo muitas vezes em busca da leveza da alma. Procuro despistar os vermes e ludibriar a pestilência da cidade. Fujo ao primeiro e ao segundo encontro. Viro esquinas, escondo-me por baixo das oportunidades que surgem.
Então, para trazer a pureza até mim, vou ao teatro e extirpo do seu ventre as personagens e os diálogos ricos, ricos, da peça À Manhã. Lembro-me de uma conversa, lembro-me daquela mania que as pessoas tinham em conversar umas com as outras. Havia nas personagens a mesma qualidade de conversa. As gentes da cidade não sabem conversar. Sabem falar, sabem dizer coisas, sabem fazer sair palavras de dentro delas mas não sabem conversar. As gentes desta cidade não sabem nada de conversas, não percebem nada sobre o seu menear. Por isso, as gentes, os habitantes muito evoluídos da cidade, em vez de se renderem aos meneios e trejeitos tão enleantes das conversas, enfraquecem-se e tornam-se a própria sombra da metrópole. Às vezes tentam conversar. Mas apenas despejam palavras umas contra as outras. Embrulham-se de tal maneira que, no final de cada solilóquio, se separam sem terem aprendido nada uns com os outros. O chorrilho de um ditado individual.
Quando não posso mais, refugio-me na valentia dos outros. Fui ao teatro. Fui embeber as vozes distantes das nossas aldeias. Fui ao teatro reaprender a conversar.

domingo, janeiro 15, 2006

Jarhead (welcome to the suck)


Tem à sua frente uma gata que lambe a pata. Em baixo, junto ao chão, as colunas deixam fugir os primeiros acordes da banda sonora do filme Goodbye Lenine. Espalham-se pelo chão frio, sobem pelos móveis, ultrapassam os puxadores das gavetas, trepam os Cds mal empilhados, colam-se à manta, em cima do sofá. A gata senta-se, enrola a cauda por cima das patas brancas. Escuta-a, e observa o que ela não vê, imaginando, no seu deserto, o que ela poderá estar a imaginar, enquanto aquele magnífico piano lhe cobre os pés com um pó feito de cristal.
O que ele tem à sua frente pode ser um sítio árido, pode bem ser uma história de infinidade e desorientação. De desapego. No entanto, aquela alma moribunda, deixa-se estar sentada em cima de duas almofadas cor de laranja, cheias de esferovite. Das teclas do piano de Tiersen saem pequenos seres vivos que se movem livremente e continuam a sua multiplicação matemática numa cadência própria de um doido, de dois doidos, de muitos doidos. Por tanto deserto e tanto sossego, amarinhando todas as superfícies que encontram: o tecido azul do sofá, a sombra nas paredes, a madeira da estante de livros, as malhas encardidas do tapete, a planura da mesa de trabalho, o vidro negro da televisão e o reflexo dentro dele, a grafite na ponta de um lápis, as letras miúdas na folha de um jornal.
Aqueles braços tombados, em cima das almofadas, não se conseguem erguer. Aqueles dedos, que saem dos braços mortos, não se mexem. Estão inertes. Nem a correnteza da melodia os anima. Ali estão, presos, inúteis, chorosos. Estar sentado, de braços ao longo do corpo. Começar uma impetuosidade, criar um meneio qualquer sem sentido nenhum, construir uma explosão e vê-la crescer, expandir-se e morrer, alimentar o vazio.
O que fazer, que caminho seguir, que gesto, que palavra, que palavras, para onde, e para quê, porquê, porquê sentir, e porque não sentir, o que fazer quando o que sente não é aquilo que se quer sentir e não se sabe nada sobre a verdade ou sobre o futuro e muito menos sobre o passado, o que fazer dentro desta colmeia de trivialidades.
Afinal, há um recipiente vazio junto aos pés. É um frasco de vidro. As mãos movem-se. Os seus dedos no vidro são como chuva sobre chuva sobre um rio. Há, nesse instante, de pele sobre vidro, de frio contra frio, de luz contra luz, a consciência plena da sua própria inutilidade. Estar sentado, de braços estendidos que seguram um frasco oco. Estar só, sentado, deserto, despovoado. Transparente.

domingo, janeiro 08, 2006

House


Todos os dias me lembro de carimbar o regresso. Há quanto tempo. Meras frases sem nexo que rodopiam por dentro e abrem um trilho em direcção ao retorno. Uma voz sem dono. Uma voz cavernosa e sem ordem, sem ninguém que a governe. Todos os dias a pensar no próximo retoque. Depois, este sítio árido onde, às vezes, as palavras se resguardam.
Presumo que já ninguém visite este sítio, largado ao futuro e à eternidade gélida do espaço virtual. Portanto, ouço o eco das teclas, ouço o tremelicar da música dos Sigur Rós, ouço o esfregar das mãos, o estalar dos dedos, o recomeço, a turbina interior a acender-se de imagens, vejo cores, vejo diálogos como imagens, pinturas expostas ao ar frio da indiferença. Esta teima na ausência. O capricho de ignorar esta necessidade de desordem, de desarrumar as ideias e de as voltar e entrelaçar, em busca de outros horizontes, outras viagens. Outras descobertas.

House M.D., na Fox, às terças-feiras à noite. Depois de Six feet under, Once and again e The X-files, esta é uma das séries melhor escritas e melhor interpretadas que me lembro de ter visto. Destaque gigantesco para a representação do actor Hugh Laurie, o médico controverso e genial lá do sítio. Estado de puro esplendor.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Breve desunião do tempo


A partir de agora o tempo multiplica-se. Corre depressa, abranda, saltita, sobe as árvores nuas, pendura-se nos seus galhos, balança. Cai. A partir desta noite, vejo todos os ponteiros de todos os relógios mais longos que as suas sombras. São duas e um quarto, são quatro e meia, é uma hora, é uma e trinta e cinco. É meia-noite. O tempo que traz lá dentro uma revolução, uma revolta, uma transmutação. Fixado à parede de cal, o som metálico dos ponteiros é enrolado numa sombra que diz negro e diz dano e diz angústia. Vejo estas horas desiguais a serem uma lágrima ao fundo do corredor. Percorro-o, introduzo-me de manso nessas águas turvas, tento espreitar os buracos que não consigo alcançar com as mãos, silencio os meus passos e espero uma resposta, uma voz mortiça ao fundo, que do negrume me diga esperança ou suspire confiança ou murmure luz luz luz. Mas eu não vejo mais que pintas de alcatrão grosso. Eu não vislumbro nenhum rosto e muito menos escuto vozes ou suspiros ou murmúrios. Sinto a breve desunião do tempo. Sinto, vindo de cima e dos lados, numa explosão uníssona e crepitante, a tômbola das horas. Não tenho esperança, não tenho fé, não tenho, ao perto, a luz. Como se visse, a partir de agora, as horas do fim. Nítidas, nítidas.

sexta-feira, outubro 07, 2005

O homem da gravata


«Tenho 45 anos e nunca pus uma gravata». Ramiro Gonçalves levantou a voz, no meio de uma conversa entre colegas de trabalho. «Nunca pus uma gravata e repudio a coisa.» Sem que ninguém lhe ligasse, Ramiro Gonçalves resolveu adoptar um tom algo sibilante ao que dizia, aguardando a merecida atenção. Como os outros continuavam a rir, de copo na mão, e a discutirem os assuntos mais insípidos, Ramiro pôs-se todo num grito. «Usar gravata é um acto ridículo que não traz nenhuma utilidade ou benefício à vida das pessoas. A gravata é um objecto supérfluo.» Assim que deixou a voz abater-se largou da boca um sorriso de triunfo. Todos os homens e todas as mulheres pararam de beber e interromperam as respectivas conversações. Foram 4 ou 5 segundos em que o silêncio se sobrepôs à algazarra. Uma paz feita de cimento veio cair sobre todos os sons dentro de cada um dos movimentos. Ramiro Gonçalves, sem copo na mão e com o fôlego já recuperado, destilou nesse sossego instantâneo o seu olhar científico. Preparava nova intervenção. Nesses 4 segundos não tirou as mãos dos bolsos e fez questão de manter sólido aquele sorriso vitorioso. Enquanto todos processavam as palavras estridentes, que ainda flutuavam à superfície das bebidas, Ramiro, o homem que nunca usou gravata, reunia dentro dele uma força distinta. Esperou que chegasse o primeiro movimento, esperou que a onda de silêncio se dissipasse, esperou, com o sorriso sempre bem assente na cara, que alguém debuxasse a mais pequena reacção ao que tinha acabado de dizer. Os seus olhos, em dois segundos, desbravaram a sala cheia de mãos e cheia de copos e de rostos atordoados. Nessa profusão de vidro e líquido, reparou que haviam muitas gravatas. Então, antes que uma delas se pusesse a bailar e a puxar a voz ao dono encarniçou-se da força excepcional que explodia dentro dele e disse «A gravata é dona dos homens que a usam. Cada homem com gravata é um fantoche e gosta de ser fantoche. De manhã, enquanto a põem em frente ao espelho, dando voltas e nós e mais voltas, está, de facto, a perder tempo. Afinal, para que serve uma gravata? Embalado, Ramiro, de camisa branca franqueada, tornava evidentes as veias do seu pescoço. «Afinal, caros bonifrates, de que vos serve esse pedaço de tecido aí pendurado ao pescoço?
Aquele homem eriçado, um recém-nascido inimigo das gravatas, pendurou o discurso e estacou-se à porta do bar. Abriu-a e saiu. Atrás de si uma comoção que aumentava. Atrás dos seus ombros, a esbater na montra com a impetuosidade de uma tempestade, o tambor da multidão, as vozes da ira, o vidro a estremecer, a ondular-se em múltiplos movimentos.
O senhor Gonçalves sentou-se no lancil. Enquanto os automóveis passavam e paravam diante do círculo vermelho, enquanto a coruja no jardim em frente piava e esse som se diluía no amansar da cidade, enquanto as gravatas, dentro do bar, voltavam ao frenesim dos copos e das conversas da largura de um canto escuro, ele pensava: «de um momento para o outro tudo isto se consumirá. Porque hoje, depois de muitas possibilidades, não te encontrei. Agora, não tenho mais nada a dizer. Devia ir dar uma volta, sei lá, apanhar o ar das pessoas na noite, não sei, sentar-me no banco de jardim, estender as pernas, ver os estrangeiros de mochila às costas e os corpos feitos de uma asneira que não compreendem. Pois devia. A qualquer momento tudo isto ruirá. Não há nada mais a contar. Sigo como as velas ao vento. Sou eu mesmo o vento. Sou a poeira que vai no vento e as pessoas não notam, não vêem. Não querem ver»
Amanhecer, entardecer, anoitecer. E depois? Há alguma coisa que seja proveitosa quando ninguém está a olhar? Como um esconderijo. Como a cortina que oscila e já não é Verão. Mas parece.

segunda-feira, setembro 12, 2005

A pele por baixo da minha pele


1. O Dr. Salvador arreda os olhos e abana a cabeça. Junho, de tons ocres, ar espesso e volátil. Diz-me meias palavras. Diz-me «não devias, José», diz-me «eu acho que é um risco voltares às lides da nossa paróquia». Tenho os braços atrás das costas, Junho, de paladar seco, a luminosidade veraneante na cal da aldeia. Tenho a janela aberta nos meus olhos e nas suas rugas. «Não podes, José». Repetia «não», redizia «a tua saúde, José», alimentava a sua preocupação no meu rosto pálido e pensativo. A janela entreaberta, os cães à sombra e nas suas línguas o retinir da tarde quente.
Agradeci-lhe os conselhos e segui. Tinha no corpo e na mente o vício. Tinha na minha língua infindáveis discursos. A vontade de sorver a felicidade dos outros e ouvir o meu Senhor, lé em cima, clamar o Amor, a celebração do Amor. Sai do consultório do Dr. Salvador pleno de convicção. Será a minha última cerimónia. Amanhã, Junho, de águas tépidas, amanhã, nestes dias abrasivos e longos, vou casar o Daniel e a Celeste. A minha última cerimónia.
2. Estou nos meus aposentos e assento as vestes neste corpo dormente Na igreja aloja-se um murmúrio solene. Vício, vontade, alegria. Neste quarto pequeno preparo-me, e nas paredes o som dos miúdos, as cadeiras, o eco que mergulha na imobilidade dos santos. Anos, anos, o meu vício nestas paredes, nos detalhes domados, no pó assente, anos, anos. Tenho no corpo o vício da felicidade alheia. Preparo-me, benzo-me. A minha última cerimónia. Emociono-me. O meu corpo soterrado de memórias. Os meus dedos amparam o livro do Senhor. Os meus passos fora de mim, de encontro aos móveis escuros, os meus passos como os últimos passos de toda a minha vida. A minha pele treme, a pele por baixo da minha pele treme, o vício, a alegria dos outros, o meu néctar, a minha vida inteira.
3. Saio, fecho a porta e não ouço eco atrás de mim. Dirijo-me à tribuna, o murmúrio a elevar-se, uma onda de vozes baixas, uma duna de bocas misturadas com os olhos brilhantes todos juntos à espera, cravados em mim. A iluminação da felicidade, o meu vício. Sinto-me nos gestos tímidos das pessoas sentadas à minha frente. Dito palavras, arranjo o meu último discurso e arremesso-o aos noivos. Daniel e Celeste à minha frente, felicidade, ânsia, a opulência do silêncio, as minhas mãos trémulas, Deus, Senhor. Amai-vos, perco o tempo e perco as palavras. Daniel e Celeste estáticos são duas sombras, à espera, à escuta. Amai-vos e respeitai-vos, a igreja repleta, um abafo de olhos e de fatos cinzentos, azuis. Amai-vos e respeitai-vos até que a morte vos separe, Daniel e Celeste. A minha voz inaudível. O peso nas pernas, no peito, dentro do peito, a querer sair. Ao fundo, o Verão inteiro a querer entrar. Penso: não quebres agora, José. Deus, vício, Senhor, Deus. Amaino as mãos a tribuna. Declaro-vos marido e mulher. Palmas, sorrisos, beijos, o Amor, a felicidade, o meu vício, inclino-me sobre a tribuna. Tombo, o fim do princípio do meu encontro com Deus. Vício, o meu amor pelo brilho instantâneo dos outros.

domingo, setembro 04, 2005

O mentiroso


Havia muito tempo que carregava aquele grito às costas. «És um grande mentiroso». Todos os dias, aquela voz estrídula a exclamar-lhe por dentro mentiroso mentiroso mentiroso mentiroso. Sempre lhe apeteceu contar aos outros pequenas histórias, ligeiros enredos que fossem avessos à monotonia resultante dos dias. Queria desviar aqueles olhos tristonhos do chão e pô-los ao nível dos seus. Queria, no fundo, alegrar as pessoas. Todas as historietas que contava tinham um fundo de verdade e eram muito claramente influenciadas pelas coisas que via e pelas coisas que sentia. Num impulso, derramava as personagens, os eventos e os sítios. Aquilo fazia-o fervilhar. A sua única preocupação era descobrir até onde o levava a sua imaginação. Não pensava em engano ou desilusões. Não pensava na mágoa que os outros pudessem sentir quando, finalmente, tivesse encontrado o fundo ao saco imaginativo e levantasse a cortina, revelando então a verdade. Eram pedaços da sua criatividade e gostava de os expor às pessoas amigas. Como quem encosta às paredes duma galeria os seus quadros ou suas fotografias. Queria ser um incitador ao devaneio imaginário, um mostruário de novos mundos. Para ele, cada história começada era uma janela aberta à rua, fora do quarto bafiento da realidade. Ele dizia que aquelas narrativas fantasiosas acalmavam a sua frustração e lhe davam esperança. Era isso, ele queria ter esperança. «Um dia entro numa destas jornadas e nunca mais regresso.» Adeus hipocrisia, adeus, crueldade, adeus injustiça, adeus impossibilidade. Por isso, inventava pequenos relatos, que atirava aos outros com todo o ardor, acreditando que, com isso, as pessoas iriam sorrir e deixar de lado as agruras da actividade moderna. Era mesmo isso. Ansiava libertar toda aquela fuligem e trivialidade que exilava das pessoas com quem contactava. Sempre os mesmos problemas, sussurrados nas mesmas frases, às mesmas alturas do dia.
Agora gritavam com ele, «mentiroso, mentiroso, falso, falso, falso». Mas o calor desabou sobre a cidade quando ainda todos o acusavam. Esse estrondo fez dispersar as vozes acusatórias. Cada um seguiu o seu trajecto, cada um fechou o seu grito e prosseguiu, como se, de repente, houvesse uma mão que lhes desligasse um botão no corpo. «O que é que se passa?» O homem, a quem acusavam de ser mentiroso, queria que o olhassem nos olhos e vissem o seu espírito incrédulo. Queria correr atrás das pessoas e bater-lhes nos ombros, e depois mostrar-lhes o seu rosto cheio de verdade, a sua verdade. Mas as vozes acusativas desapareceram entre o polvilho da rotina diária. O homem da mentira ia andando de um lado para o outro. Incerto, com gestos ainda difusos, entrava no período do silêncio. A noite abriu as suas asas e escureceu todas as palavras e todos os pensamentos se tornaram certezas. Mas nenhum deles deixou de soar a mentira.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Estilhaços


Quando subia a rua sentiu as janelas tombarem sobre a calçada íngreme. Dentro das janelas havia vozes. Dentro das janelas viam-se gestos e vozes langorosas que flamejavam de indiferença, de miserabilismo. Viu os trilhos de metal que carregam os eléctricos. Ao cimo da rua gente passava e abafava os seus pensamentos. Cada passo muito vagaroso, cada lembrança a luzir-lhe por dentro, a pressagiar-lhe, de repente, tudo o que queria dizer. No eco dos seus pés, que embatiam no chão em lentidão extrema, quase inertes, assistiu-lhe, porventura, um tal fulgor no espírito que lhe palpitaram do cimo da língua todas as palavras que deviam ser ditas.
E disse: talvez o mar sejam as pessoas, talvez a voz que ouço do mar sejam as pessoas todas juntas, todas tristes que gritam, talvez o mar inteiro seja um grito e talvez esse grito só seja escutado em raros momentos, quando debruçamos a nossa alma sobre ele.
Talvez tudo seja feito com ferro, com vidro e com madeira. Talvez tudo seja feito de ferro e de vidro. E de estilhaços.

terça-feira, agosto 16, 2005

A generosidade da Natureza


Faço intenções que isto resulte. Deposito nas palavras que agora escrevo uma ventania, um repentino movimento a clamar alvoroço e a pedir vozes, a pedir diálogos, a resgatar gente, que venham até cá, que se lembrem de tocar à porta, é castanha, de madeira, que venham, são bem-vindos. Contam-se histórias, combinam-se discussões sobre o mundo e sobre os que nele depositam as vulgaridades amontoadas em dias seguidos à espera.
Ontem a maledicência frontal sobre um rapaz. Ontem alguém lhe disse que a natureza não tinha sido generosa com ele. Um ribombar lá dentro. Aquelas palavras sem dó, aquelas palavras como um baloiço a ir e a vir à conta dos empurrões da memória, aquela frase o dia inteiro a pairar como um guarda-chuva em dia de tempestade. Uma rapariga meio tonta, sem graça nenhuma, sem nenhum motivo evidente para ser tida em conta disse-lhe aquilo, sem ele estar à espera. É o pior. Quando se trocam palavras e formam conversas simples, os olhos nos olhos ou nos detalhes do outro, quando a passagem breve dentro do café é causa de distracção e as coisas fora do sítio deslocam-se à vista desarmada, quando ele sentado, quando ela a ouvi-lo dizer coisas eloquentes, quando ela retém o que ia a dizer porque lhe apetece sorver mais um pouco do café com leite, quando ele, cândido, lhe confessa a desilusão sobre as mulheres, sobre a vida que leva, quando por fim põe pausa na língua e espera um consolo, uma concordância em feitio gestual, ela, por impulso, por maldade, por incompreensão do silêncio que lhe vê no rosto diz-lhe a natureza também não foi lá muito generosa contigo. Eles não são amantes, eles não se encontram muitas vezes, eles nem sequer têm gostos em comum. Aquela frase, a ele, corrompe-lhe o interior. É um ser estraçalhado que agora se levanta e acerta conta com o empregado. Ela quando se levanta e faz o mesmo já não se lembra do que disse, porque entretanto, passaram muitas vozes e passou muito tempo a enviar mensagens do telefone e lá fora chovia. Ele, por estar entregue às fraquezas de uma personalidade extraviada pensa muitas vezes ódio, pensa muitas vezes com muita força pregar-lhe um estalo ou levá-la para um descampado e aí, na mudez da escuridão, mostrar-lhe que, afinal, a bondade da natureza tinha sido bem maior do que ela pensava. E demonstrar-lhe que, em certas ocasiões, é do agrado dos deuses ser-se discreto.
Os pensamentos são facas aguçadas. As imagens de violência misturam-se naquela vaga de chuva e dos céus ele não vislumbra ousadia. Fica a olhar um cinzento amolecido debaixo do toldo de plástico a dizer Café da Praça em letras vermelhas. Ela ainda dentro do rebuliço das bandejas prateadas conversa com alguém que encontrou. Não se lembra. Nele, o ódio. Ele, já húmido daquele céu sem piedade, quer mal aos outros, quer que a vida dela seja um poço negro, quer ficar sozinho, quer recolher os gritos de que a cidade é feita e arremessá-los aos rostos dos felizes como ácido. Ela, entretanto, sai, e olha para os lados em busca dele, a chuva pinga abundantemente da borda do toldo branco que diz Café da Praça em letras vermelhas, ela tropeça em alguém que entra empurrado pela chuva. No banco de trás de um táxi, uma angústia muito grande a afastar-se.

domingo, julho 10, 2005

O tempo a passar


Quando reparo nas datas nem acredito. Quase dois meses. Receio que se esgotou o engenho de enrolar palavras dentro de mim e de as mostrar aos outros, afoitas, em forma de sonoridade aprazível. Não tenho escrito, a não ser em ligeiros momentos do dia, em que construo duas ou três frases na minha cabeça para depois logo as arrumar à pressa, retomando a atenção devida aos obstáculos dentro da cidade. E o tempo passa. Há uma massa espessa que cobre o tempo e o encobre dos sentidos; e o tempo passa, anda como um assobio volvido ao céu, corre, e esquece a nossa pressa e a nossa vontade. Voa, multiplica-se, alastra-se; o tempo, às vezes, parece a mãe de todas as aves e retira de cada uma delas o seu olhar ágil sobre as estradas, sobre as terras lavradas, sobre os vales virgens, sobre os telhados cobertos de musgo e de silêncios, de temores. O tempo que me persegue e me afasta. Estes dias de verão, do regresso a casa, carregando na base do pescoço uma caixa cheia de cinza invisível. Quero escrever, quero escrever, quero muito escrever, todos os dias queria escrever, queria inventar palavras novas e queria apoderar-me desta ambição literária, torná-la hábito, convertê-la numa necessidade premente, drogar-me com os espaços entre as palavras, pegar nas vírgulas e nos acentos e injectá-los nos meus músculos, golpear o corpo, entranhar lá dentro muitas letras e deixar fermentar frases no ardor do meu sangue.
Mas o tempo passa e esquece. Institui-me a rotina. A bafienta marcha do tempo. Quantas vezes me lembro de reparar nele, de o puxar pelos braços, ou pelo tronco, e apoderar-me da sua turbulência. A ver se me lançava eu próprio numa voragem criativa que nunca exaurisse.

terça-feira, maio 17, 2005

A sinuosidade do dia seguinte


Finalmente. Quero que os dias me castiguem, quero que as lembranças desses dias me ceguem e me façam largar a memória. Como as marés, venho desaguar às tardes de Maio sem noção do tempo. Caminho e destruo-me. Às vezes, acompanho os meus pés descalços na areia com pensamentos embebidos na brisa da tarde. Às vezes, quando me quero aproximar, há distâncias e há incómodos. Um intervalo muito fundo, de longitude incerta. Finalmente, deixo abrir um pedaço na noite e assisto à dança da claridade em cima da minha pele. Dissipo algumas palavras. Sem querer dizer nada, sem querer alcançar nada, sem desejar nada. Quando a noite realça a indiferença do futuro. Quando a noite expõe a sinuosidade do dia seguinte. Quando me quero esquecer, quando pego na tesoura a recortar um segundo para delapidar um minuto. A esperança dum caminho de folhas secas, à espera do vento crespo da montanha.
Tenho um punhado de cabelos brancos entre os dedos.
Vejo no asfalto um pingo de chuva que se desfaz nele e o enegrece.
Encosto a cabeça na cadeira, relaxo o corpo até o desapertar de mim, estico o braço ao longo da janela em andamento, observo o mar e a espuma branca na areia. Vejo o céu.
Ando depressa, atravesso a rua, do canto do olho sinto os carros quietos, há outros corpos que passam e que se cruzam comigo, ando a perseguir o conforto e a ordem, os sonhos, os sonhos a fugirem sempre que acordo, sigo agregado a estes pensamentos, ao anseio de os ver, um dia, pintados em tinta azul num muro disposto a ser demolido.
Por cima de mim, árvores.
Em cima de mim, um céu de árvores, limpo.
Aqui, nesta terra demorada, os corpos das mulheres são lembranças. Nesta luminosidade, resta em cada corpo martirizado, a ofensa do abandono. Lembro-me.

Este céu, este mal


Na cama vejo além do tecto, vejo o céu. Sou ridícula. Nestas roupas afoitas sou uma mulher desmembrada. Quero, não quero, tenho medo, tenho medo deste céu sujo e que ele traga os teus olhos perto dos meus olhos. Deitada nesta cama só vejo a tensão do mundo espalhada sobre a casa. O telefone. Num impulso, levanto-me. O céu negro. O céu espesso e negro. Atendo, a minha voz é uma gota desse céu. Teresa? Ainda aí estás? Anda lá. A Joana. A festa. O céu que desaba. As nuvens são monstros e gritos que fazem vibrar esta cama, estas paredes, eu. O que fazes ainda aí? Dou-te quinze minutos. Vá lá. Nem imaginas quem cá está. Ele. Tu que eu quero, que eu não quero, não posso. A Joana quase a sair de dentro do telefone. Vem, vem, vem.
Quando desço as escadas não ouço o céu. Quando abro a porta do prédio não tenho sobre mim o espanto dos outros. Há pessoas que passam. Há conversas ténues que passam. Espero o táxi na borda do lancil. O céu embrulhado, vigilante. Não vás. O céu rude, os olhos do céu negros. Os automóveis passam; entro no táxi. Boa noite. Para a rua das Acácias, por favor. O senhor taxista, a música que irrompe do rádio, está um dia pesado hoje, não acha? Solto as palavras que posso. O céu enorme e negro. Enrolo palavras nas palavras do senhor taxista. Tenho os olhos nas manchas da cidade. A velocidade do automóvel. A música e depois as notícias e depois manchas verdes no vidro. Depois o céu aberto e escuro, muito perto. O senhor taxista empolgado com qualquer coisa, as novidades do mundo. Os olhos dele no espelho retrovisor. Os meus olhos nos dele muitas vezes. O céu como uma manta negra. O brilho do espelho retrovisor. Asfixio e ponho os olhos na estrada, nas árvores, nas casas que fogem. Tenho no peito os olhos do senhor taxista. O céu brutal, o céu com uma voz alongada, o céu com uma voz temerosa. Os olhos do senhor taxista em mim. O abrupto de todas as cores misturadas em todos os gritos. A convulsão do metal do táxi. Um corpo que é violentado. O céu como uma prensa. O céu como uma piscina de sangue, de metal retorcido e pedaços de roupa.
Em cima de mim já não existe céu. Há uma névoa e aromas negros dentro de mim. Tenho um homem deitado no meu colo. Tenho o sangue do senhor José nos meus braços. A convulsão do mundo. Eu sentada. Eu como uma estátua, olho o senhor José. Tem os olhos abertos, e neles o medo. Coloco a minha mão na sua testa e o céu está dentro de mim. Quando os olhos do senhor José se fecham é o céu que se fecha em mim. Eu sou a paz que é feita de sangue.

quarta-feira, abril 20, 2005

2046


Há filmes que se extinguem e se esquecem, há filmes que se alcançam. E existem outros, como 2046, que me fazem adquirir mais vida, mais desejo pela vida. Ocorrem à vista os planos impelidos propositadamente aos detalhes e às coisas esquecidas, como o esvoaçar de pés, dentro de sapatos pretos, a delimitarem no soalho as palavras vindas de cima, a suspensão angelical do bico da caneta sobre o papel, perpetuando o ritmo delirante das ideias, o baile das cores quentes, a presença massiva de sensualidade e de vultos no ritmo perfeito. A mesma exiguidade entre os corpos e a mesma intimidade dos espaços que In the mood for love. É um filme em forma de arte, que grita talento em cada plano, em cada pausa entre as vozes e entre os rostos que se observam. E depois, a servir de amplificação ao filme, há ainda a música. Que se mistura no cenário e nas roupas, que escorrega delas até à sombra, que é o som de uma porta que fecha, que é a aspereza de muitas vozes entrançadas no fumo que ondula perto do tecto, que é aquele lugar invisível entre uma pergunta e uma resposta. No final, quando me acontecer o alude abrupto de imagens de vida, estas vão lá estar

sábado, abril 09, 2005

Mar Adentro, tantas vezes eu quis


Não sei se o teu coração também se encolheu e depois expandiu quase ao fundo do mundo, como o meu, após teres visto Mar Adentro. Enquanto esperava que o Metro chegasse, tentei construir frases que expressassem correctamente o avesso da minha pele. A onda densa e secreta que sinto por dentro e toma conta de mim quando o que vejo, o que ouço, o que cheiro, o que tacteio, é admirável. Não sei se, tal como eu durante o filme, ficaste sozinha, sem cabeças à tua frente, sem cadeiras ou escuridão, sem paredes e sem portas e perdeste a noção do tempo, do espaço e do palpitar do teu peito nesse espaço e nesse tempo. Queria perguntar-te, agora, ignorando as ruas, os prédios, as planícies, as encostas, os vales, as montanhas que nos apartam, se o tivesses visto ao meu lado nos teríamos encontrado e contemplado o sorriso um do outro, plenamente repletos de vida, e de morte. Não sei se o teu rosto se contraiu, não sei se os teus olhos se aguaram, não sei se durante Mar Adentro te sentiste pequena e grande, te imaginaste a olhar o espelho e viste, precisamente como eu, dois espectros, duas formas de luz, vizinhas como dois grãos de areia numa praia e, no entanto, impossibilitadas de se tocarem, de se acariciarem, nem que fosse por um momento. A vida e a morte.

sexta-feira, abril 08, 2005

Os dias do fim e do princípio


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saía da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e ocos, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros cochichavam. Rugiram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.

domingo, março 27, 2005

Wim e Ingmar


Por coincidência ou não, calhou-me ver hoje dois filmes de dois sublimes realizadores. Retardei estas palavras ao limite máximo. Não sabia o que escrever porque tive receio de atordoar esta sensação revigorante que ainda permanece e que me mantém preso às imagens que afortunadamente vi. Então o que me faz resistir ao adiantar das horas? O que me faz persistir em busca daquelas palavras exactas que dignifiquem tamanha volúpia fotográfica? Porque tanto Saraband como Land of plenty são exposições fotográficas. O primeiro é um monumento aos rostos sofredores, aos interiores plácidos e submersos em diálogos perfeitos, que se engrandecem ao ritmo do silêncio e do Passado. Land of Plenty, de Wim Wenders, resplandece de planos cinematográficos monstruosos, recorta a sombra humana escondida de uma América raramente vista e a coloca na plena luminosidade da sua geografia; Sol sobre o rastejo do esquecimento, a multicultural dimensão do abismo em formato real.
Serve este pequeno texto para agradecer humildemente a Ingmar Bergman e a Wim Wenders que se juntaram e, sem saberem, me ofereceram um dia perfeito, quando ele já resvalava para a usual ribanceira enfadonha.

quinta-feira, março 17, 2005

Em frente dos olhos


Quase pus em frente dos olhos essa longínqua tarde de Verão. Agora não posso escrever sobre isto muito abertamente. Escrevo a ciciar. Ponho aqui estas palavras muito devagar e a olhar em volta, espreitando vozes e inclinações subtis do céu. Não quero agourar, não quero celebrar antes de tempo, não quero que o gelo ou a secura ou a rispidez me encontrem, escondido sob estas nuvens e sob este manto azul, a derramar estes desejos, estas demandas na lembrança. Quase pus em frente dos olhos aquela saudosa tarde de Verão e recordei páginas e páginas manuseadas por dedos densos de calor, de mar, de luminosidade. Arrisco muito quando escrevo isto. Quase a suspirar as palavras, quase a resgatá-las do pensamento como se resgatam os sonhos ao acordar. O que eu pretendo é sacudir do corpo este pó que sabe a gelo, o que eu realmente quero é fazer um golpe repentino no mundo e meter lá dentro o odor do Verão. Baixinho, debaixo da penumbra da cidade e do trovejar contínuo das pessoas, escrever muito devagar a minha necessidade de ter sobre mim outra estação, noutro lugar, e exclamar, mesmo no centro disso tudo, que é necessário que os dias se alonguem e as horas não fiquem a pingar mais as gotas do Inverno. Por isso, quase punha à frente do rosto estas nuvens e este azul que as atraca. Por isso, antes que a intempérie me encontre a debicar a memória dessas tardes fundas, tenho que escrever muitas vezes Verão Verão Verão Verão Verão Verão Verão, até fazer estilhaçar de vez este tempo carcomido e sem jeito nenhum.

sexta-feira, março 04, 2005

Million Dollar Baby


De todas as vezes que vou ver um filme de Clint Eastwood desconfio. Talvez se trate de falta de fé, talvez porque já não acredite que ainda existem homens (e mulheres) que nos podem salvar deste descontrolo emocional em que vivemos. Lembro-me de Imperdoável, lembro-me de As Pontes de Madison County, lembro-me muito bem de Mystic River. Todas as vezes duvido que consiga fazer melhor, que consiga melhorar o que, à primeira vista, parece impossível de ser aperfeiçoado, em todas as vezes desconfio da grandeza do seu dom e em todas as vezes me cubro de vergonha. Ontem, não foi o constrangimento que encurvou o meu corpo e o fez observar de muito perto a incivilidade das minhas dúvidas. Ontem, tombei porque levei mesmo um soco no estômago. A lição deste homem, com 74 anos de idade, ficará num lugar especial do meu corpo (não só da mente, mas do corpo), porque, esse homem, essa criatura mítica, essa figura eterna do cinema contemporâneo, pegou no seu punho e enfiou-o sem «piedade» na minha barriga desamparada. Eu sei que Clint Eastwood lá deve ter os seus defeitos mas é muito difícil imaginá-los quando vemos este trabalho. Million Dollar Baby é um filme maravilhoso. Não há outra palavra que o descreva melhor. Não pode haver outra palavra que o publicite melhor. Ou então, se calhar, não devia existir palavra alguma para o definir e ser Million Dollar Baby uma única palavra que englobasse muitas outras: humildade, perdão, bondade, força, verdade, pena, inspiração, compromisso, responsabilidade, coragem, ânimo, sofrimento, dor, coração. Amor.

terça-feira, março 01, 2005

Debaixo do pó, dentro de uma arca


Quis interromper a correnteza dos dias em branco. Quis relatar algo especial, que descrevesse com detalhe um acontecimento valioso, ou apenas uma onda de pensamento. Eu sei que ela vem e que ela vai, consoante outros apelos e mais urgentes necessidades. A inspiração, o alento dos que criam e dos que querem fazer dos actos simples generosos monumentos de felicidade, a verdadeira. Não sei se é deste frio feito matéria espessa e aglutinadora das ideias geniais mas, a verdade é que, hoje, nada de coerente sairá destas linhas. Reassumir o hábito diário da escrita, recuperar o uso do improviso e assistir ao crescimento desconexo que estas palavras trazem. Seguir o impulso, perseguir-lhe o odor em cada esquina, abrir uma fenda no silêncio, na noite branca, e entornar uma multidão de frases sem ordem nenhuma, como um bando de lunáticos, evadidos de uma instituição mental. Então vasculhei histórias antigas, feitas noutro tempo de maior fulgor imaginário, soprei o pó aos manuscritos assentados no fundo de gavetas e de uma arca que eu nem imaginava ter. Nesta noite, muito próxima do vazio, não me resigno. Deixo um conto muito antigo e que me fez atrair ao rosto um breve sorriso. Porque entre esse dia e este dia não existiram muitas noites frias como esta.
E a história diz:
Sem dúvida que o tempo passa depressa. Entre os dedos, dias. Entre os dedos escapam-se as horas dentro dos dias, a vida. As pessoas cada vez mais longe. As vozes das pessoas cada vez mais longínquas, a ouvirem-se de muito longe, mortiças, fracas, quase imperceptíveis, à espera de respostas, nem que sejam ocas mas que sejam respostas; o vento, a percepção de um som vindo da boca de uma pessoa que nos é familiar, as pessoas fogem umas das outras e não sabem fazer outra coisa. Pensam «depois telefono». Pensam «depois respondo-lhes, mais tarde, quando acabar o que tenho de fazer». Pensam «ainda só passaram dois dias». Pensam «só passaram três semanas». As pessoas dissipam-se diante dos dias e do tempo, e depois não lhes resta mais nada.
Depois, a Inês. Encontrei-a tímida, algo arisca, na Outra face da lua. Oculta no canto, perto do balcão de atendimento com um casal de amigos meus. Quando entrei várias pessoas me olharam, interromperam as suas conversas e olharam na direcção da porta, logo a seguir ao biombo de tijolos de vidro de várias cores. Amansei os meus gestos, condenei o meu corpo a uma ligeira pausa logo ali, encadeado pelo brilho de tantos olhos. Enquanto tirava o casaco voltaram as conversas subtis, aquele marear de sons, libertaram-me. Foi um instante. Vi-os ao fundo, a beberem chá com leite. Cumprimentei-os, sentei-me, serviram-me cumprimentos cordiais e mais que isso, sorrisos, a dizerem qualquer coisa sobre o meu cabelo ou o casaco demasiado quente para a época. A Inês diante de mim. Olhos verdes enredados numa névoa de mel. A boca igual à da actriz Patrícia Arquette. Os mesmo dentes caninos encavalitados, a mesma sensação libidinosa quando se ria. Contive-me. Sorri-lhe a intentar tocar-lhe com os lábios. Depois entrei na conversa. Só para disfarçar e antes que fosse sujeito a um reparo qualquer. O meu encantamento crescia. Havia o começo. Dentro de mim era óbvio aquele crepitar que só sucede nos melhores dias e muito raramente. Cá dentro o primeiro revolver do que dormita há tanto tempo. A perder-me nos seus detalhes, da roupa que trazia posta, do colar azul que exibia no pescoço. O casal de amigos, juntos, num beijo de meiguice. Baixámos os olhos, os dois ao mesmo tempo, o som de lábios com lábios, que não eram os nossos mas que eu queria que fossem. Eu a sorver-lhe uma voz muito ténue que me obrigava a chegar mais perto, aqueles lábios mais perto, aquela voz dela sem se deter, a contar histórias, histórias da vida que ela vivia em Londres. Estou condenado, pensei. Londres. Estou salvo, pensei. Londres, Inglaterra, longe. O freio da distância. Mas ela continuava. Estávamos os três a olhá-la, a ver aqueles dentes brancos gastarem lentamente os lábios de adolescente num rosto de mulher, a vê-la contar mais histórias, os seus cabelos escorridos, finos, revoltos. Nós os três à espera dela quando se punha a divagar, e aquela voz tão frágil, de timidez, de perda, sei lá, uma voz do fundo de qualquer coisa que quer dizer tantas coisas. E seguiu, porque nos escutava atentos, continuou. Naquele tempo todas as pessoas atrás de mim eram conversas surdas porque eu só a ouvia. A luz humilde que pendia sobre nós era já a noite do céu lá fora porque éramos nós os quatro e as palavras e o bule de chá vazio, com restos de ervas no coador de metal. No jorro de palavras ouvi «namorado». Ouvi, impaciente, «o meu namorado que está em Londres». E depois não escutei mais nada. Nem as vozes dos outros, nem as vozes dos que passavam na rua, nem a música, nem o som da minha perna inquieta. Depois deixei de ouvir todos os outros sons e só quis ver as suas cores (Porque os sons também têm cores). Contemplei o sorriso dela, muito vívido. A sala iluminou-se mas o céu lá fora, que era uma noite escura, caiu sobre mim. Quando voltei o rosto a apalpar as horas estavam a deixar-me à porta de casa e ela já me dizia adeus com os dedos colados no vidro do carro. Eram rios de leite, escorrendo no vidro turvo de tanta luminosidade.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Um longo Domingo


É assim que deve acontecer. Quando o filme se escapa da tela branca, se espalha pelas cadeiras cada vez mais vazias e se encosta a nós, pedindo abrigo. A querer ampliar o seu espaço, a querer prolongar-se como os humanos se querem prolongar ao longo da vida. Quando o filme não padece na oclusão das imagens nem no acender das luzes, como se as imagens, recentemente fundidas em nós, também quisessem percorrer o mesmo caminho que o nosso até à rua, descessem as escadas do metro e vissem o átrio completo de luz e despojado de gente, e também espreitassem o negro do túnel e o metal oleado dos carris, tal como nós, aguardando a golfada de ar quente, que antecipa a fereza da carruagem; como se as personagens e cada uma das suas frases exigissem outra dimensão, aparentadas aos nossos próprios passos na rua fria e muda; é quando os pormenores da história se expelem como estilhaços para fora do rectângulo branco à nossa frente e parecem ganhar a forma de outra companhia, de outra presença, que querem para sempre, unirem-se à nossa voz, aos nossos gestos, aos nossos desejos.
Era sempre assim que devia acontecer. Um filme a querer perpetuar-se em nós, uma sucessão de imagens e vozes e lugares que se arremessam ao nosso caminho e não se desviam, não se querem desviar. Não querem partir sem se certificarem que o nosso emudecimento momentâneo é de espanto, é de encantamento, é de reconhecimento.
É de querer viver muito.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O pacto da eternidade


Quero lembrar-me: a porta da sala a abrir-se, o meu avô sentado numa poltrona vermelha, a balbuciar injúrias inofensivas para dentro da televisão, aos homens de gravata e de discursos eloquentes. Quero que a lembrança se afirme na minha pele e me conte: a porta que se abre completamente e se esbate contra a parede, o meu corpo frugal desliza, esconde-se, monitoriza com redobrada vigilância os gestos muito lentos do meu avô. Na sua face uma brusquidão. Nos seus olhos a fluência das imagens, das notícias. Encosto-me atrás da estante; espreito, ouço a sua voz esvair-se para dentro do ecrã, vejo nos seus óculos uma revolta, vejo esse tumulto coado mas não me assusto, sinto a sua indignação mas não reajo. Espreito, através dos livros de Mao Tse-Tung, através dos livros de Álvaro Cunhal, através das molduras empoeiradas. Espio-lhe o corpo embutido no couro escarlate, a barriga debaixo do colete verde e o boné, abandonado na sua cabeça, como albergue evidente da calvície. Quero recordar-me, quero muito recordar-me: então, ele, que agora atira gargalhadas ao ar e com elas faz estremecer os móveis escuros, diz «vem cá, rapaz», entre a pausa das vozes magnânimas vindas da caixa de luz diz «senta-te aqui, pega nesse banco»; é uma indução em jeito manso, é uma súplica embargada pela corrente alegre da boa disposição.
O meu avô, enfiado sem pressa nenhuma naquela poltrona majestática, em frente ao televisor. Eu sentado num banco de madeira, ao lado dele, imóvel, com as mãos entrelaçadas no colo, aguardando um qualquer gesto, um qualquer indício de movimento, que me faça saltar daquela pose de mimo. Eu e o meu avô, observando as notícias que se colam ao rosto como lenços de cetim e salpicam as paredes da sala, atrás de nós. Agora lembro-me: numa faísca de silêncio, o meu avô levanta o braço. Era um meneio feito de tempo, feito de memórias, assente na dignidade dos anos e na esperança sempre viva desses anos. Aquele braço no ar a levantar com brio a mão, emaranhada em todos os Invernos e todos os Outonos. Lembro-me, quase sem querer: aqueles dedos como labirintos esponjosos de uma existência sobrevivente, bordejada pela inconstância da vida, como os próprios comentários vindos da rua, ufanos pecadilhos da duração humana. Lembrar-me, pegar nas memórias dessas mãos que cinzelavam perfeitamente as palavras, e a demora entre as palavras, entreter-me, nestes dias do recomeço, a olhar os rios de sombra, a escutar-lhes a vontade férrea de serem muito mais que linguagem e indicações.
Desfaleço. Quando fecho os olhos e me imagino ainda pequeno, a reter no corpo as vibrações de gente maior que a minha voz. Desvaneço e sigo o torcer do tempo em busca da eternidade.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Recomeço

(ou a história de uma interrupção longa demais ou a tentativa de absolvição para algo indesculpável)

Ainda que os leitores assíduos deste blog não sejam mais que dois – numa hipótese mais optimista talvez três – sinto que, se não largasse aqui uma tentativa de explicação para este hiato temporal desde a última publicação, estaria a ser evidente demais no meu desleixo.
O que aconteceu foi o seguinte: num dia de Dezembro lembrei-me de fazer uma tosta de queijo e fiambre. É certo que o clima ainda estava longe da aspereza glacial que hoje é motivo de conversa em cada esquina desta cidade. Mas deu-me para lanchar naquele dia, mal sabendo no que me metia. Um dos milhares de actos quotidianos que, à partida, são do mais fútil e inócuo que existe. E por ser assim, os gestos que se fazem aquando destas tarefas rotineiras são tão automáticos que nem pensamos neles. Gestos como o de rodar uma maçaneta ou o de enfiar dois dedos na asa da chávena e levá-la à boca são imediatamente arrumados num desvão do cérebro até que algum psiquiatra necessite de fazer uma regressão através da hipnose e descubra que há algo dentro de nós que não está muito bem nivelado. Abrir a tostadeira, meter lá dentro o pão, fechar a tostadeira, fazer outras coisas mais importantes, entretanto. Parece simples, parece brincadeira de crianças, ou de bebés até. Mas, não são assim tão poucas as vezes que destas funções mundanas resultam graves incidentes. Um curto-circuito, por exemplo. Não foi mais sério porque o quadro da luz disparou e a coisa morreu ali. No momento imediato pensei: «tenho demasiados aparelhos ligados. Desligo o aquecedor e a tosta continuará o seu caminho.» Assim fiz. Quando voltei a ligar o quadro a luz voltou a desligar-se. Foi quando notei que, afinal, não tinha apenas uma tosta no menu. Uma secção do fio de alimentação à corrente eléctrica estava também a ser tostado. Obviamente, seguro que daquele meneio tão habitual somente resultaria o estancar da fome (ou gula) nem reparei que o cabo, meio enovelado por falta de arrumação competente, tinha ficado trilhado e derretia com o mesmo compasso do queijo.
Pois, mas que tem isto a ver com o «silêncio» abrupto do weblog? Toda a gente sabe que os produtos informáticos são hiper-sensíveis. Todos os que lidam diariamente com computadores (como eu) deviam saber que existem umas coisas que se chamam UPS, que protegem os aparelhos informáticos, precisamente contra os atentados lancinantes da rede eléctrica. Caros amigos: eu não tinha nenhum tipo de segurança, e, azar dos azares, paguei – e ainda estou a pagar – bem caro por isso. A motherboard do computador torrou, tal como a tosta e tal como o fio de alimentação à corrente. Acresce a isto tudo o facto determinante de ter comprado a peça (e o resto dos componentes) no Porto, numa daquelas betesgas de informática, erigidas num dos manhosos Centros Comerciais da zona mais decadente de Gaia. Tudo com o objectivo sôfrego de conseguir arrepanhar uma ou duas centenas de euros. E acontece-me isto, que não sou propriamente dado a economias quando chega a altura de investir em informática. Detesto lugares-comuns mas este tem que ser aqui escarrapachado para ver se aprendo: o barato sai caro.
Refeito do desgosto, levantada a cabeça, dissecado e depois sarado o trauma, tratei de levar o acessório à loja na expectativa de a ter reparada ou substituída brevemente. Meteu-se o Natal, meteu-se o final de Ano e a seguir, um tempo em que é costume haver no economato português uma «actividade» chamada balanço. Este período «transitório» costuma durar uns dias, uma semana, vá lá. Hoje, que já passaram duas, contabilizei, até agora, dois pesadelos cujas particularidades agora não me recordo mas, na essência, tinham a ver com falências de lojas de informática e grandes espaços despojados de qualquer tipo de móveis, secretárias ou computadores. Lembro-me de acordar a meio do sonho, ainda com o corpo trémulo e os olhos obstruídos pelas lágrimas, a gritar «não me levem a motherboard, por favor. Voltem.» Portanto, aguardo notícias.
Se escrevo estas palavras e as publico agora é porque uma alma altruísta me emprestou um computador. Pessoas insistiram para que fosse a um cibercafé ou que ficasse até mais tarde no emprego e escrevesse lá, que permanecesse indiferente ao meio ambiente, que ignorasse as conversas estrídulas das pessoas e que não lhes ligasse nenhuma quando espreitassem ou viessem perguntar «o que escreves?», que fingisse não sentir a luz cortante e espasmódica no rosto, que, no fundo, abdicasse do conforto de casa, que tanto tempo levou a compor ao meu gosto. Afinal, não é isso que fazem os grandes escritores, perguntavam as pessoas, algo desapontadas. Pois, mas eu não sou um grande escritor e essas pessoas foram instantaneamente recambiadas para o fundo da lista de contactos (é verdade, a minha lista de contactos tem um fundo), à conta do temperamento muito excêntrico e muito susceptível do autor desta história.
E agora que o número de leitores deste weblog se reduziu dramaticamente não me resta outra alternativa senão começar de novo o testemunho e o relato destes dias cada vez mais desordenados.

sábado, novembro 13, 2004

Ondas de luz


Nestes caracóis existe luz. São negros, tal como a luz também é negra quando é pura. Dentro deste enleado de luz negra existem muitas ideias e muita sensibilidade e muita criatividade. Ontem, no momento exacto em que a noite se pôs, eu quis deixar lá os meus dedos. Vê-los desaparecer no interior dessa luz, estreitá-los até que deixassem de ser meus. A noite avançava, álgida, os meus dedos e as minhas mãos sempre inquietos, tentavam desprender-se do meu corpo, queriam fundear-se naquela negrura reluzente. Os meus dedos desejavam ser as ondas compactas e vigorosas, escuras, cintilantes, enigmáticas, que os meus olhos viam e não acreditavam, que o meu olfacto sentia mas não podia acreditar.
Quando a noite cresceu e se fizeram nela instantes de caos, por momentos, que eu julgava terem sido dias, deixei de ver essas ondulações. Buscava na rua, observava as janelas das casas, vigiava o céu e a película de gelo que o segurava. Não as sentia próximas. A luz longe de mim, a pureza do negro muito longe de mim. Havia, naquela altura, muita gente que dizia coisas, havia o meu rosto a olhar para os meus dedos; eu era um labirinto de pensamentos.
A noite como um regaço morno a atender as minhas demandas, os meus desejos. Eu precisava que uma massa enorme de ondas negras me encontrasse. Ao meu lado, esta escultura de geometria circular. Ao meu lado, infinitas linhas negras de luminosidade como destino natural dos dedos de uma mão fria.

terça-feira, novembro 09, 2004

Uma forma de loucura


E ele, quando acabou de descer os degraus e assomar à rua, pensou: o início das coisas. Não me habituo ao que te quero contar, às cartas inacabadas, folhas em cima da mesa ao relento, propícia à aragem que passa, e às pausas a observar o que dizes, o que se retira desses lábios em formato mais pequeno e mais perfeito que o regular, o que dizes a vermos o mar. Abriu o guarda-chuva, deu dois passos e deteve os olhos na quadrícula riscada no passeio. Pensou: esplanada, tarde quente, tarde a aquecer, mentirosa, tarde com mesas à volta das pessoas e não o contrário, as tardes de quando se intenta a caminhada em todas as direcções possíveis. Depois recomeçou a planície dos passos seguros no cimento do passeio. Na brecha que a pele mostrava em minúsculos movimentos da sua mão, sentia o letargo da chuva que caía, agora intensa, no topo do guarda-chuva. Desviou-o um pouco. Olhou o céu e as folhas, entre os seus olhos e esse céu, e voltou a pensar: o princípio da consciência como moeda de troca, ver passar a tarde, limpar os olhos, ver as pessoas desfocadas, a timidez e o desconcerto da cegueira breve, a apática maneira de vestir, a maneira de compor os membros ao longo da caminhada, do recomeço da noite, do dia, de nós.
Ao dobrar a esquina, desvia-se e vê: gancho de plástico castanho, cabelos grisalhos emaranhados, pertinazes, intolerantes, a sua palestra surda proposta em segredo aos amantes do Mal. Continua a caminhar, a sua marcha como um carimbo grosso e o cimento escuro da água como um rolo de papel, desdobrado imaculadamente ao infinito da rua. Pensa e deseja, pensa sem querer desejar: tarde quente, tarde antes do Verão, antes de eu chegar a tempo de palmilhar uma bolsa feita de remendos e encontrar lá dentro a minha quietude vestida de negro. Ele, com a mão a segurar a força do céu, prossegue no seu caminho, entre montras e outras pessoas que também seguram com algum afinco a vara do guarda-chuva. De vez em quando, o vento e a chuva desviam as pessoas. O vento move a chuva de encontro ao vidro das montras. Ele detém-se a ver as gotas que escorrem encarneiradas no vidro. Defronte do seu vulto algo fosco observa outros humanos e a sua forma de gritar.
O homem entra no café, sem pressa. Sacode o guarda-chuva e coloca-o nas costas de uma cadeira. O homem, ainda com a gabardina vestida, senta-se. Não se sacode, não baixa os olhos, não se esconde. Vê: os dedos de alguém a bater ritmadamente em cima de uma mesa, uma chávena de café utilizada que balança e estremece, a colher desmaiada dentro dela, ciliciando os ouvidos de quem está perto, as mãos de outra pessoa que manuseiam um livro acabado de comprar, o corpo magro do empregado, segurando uma travessa de metal, e as luzes algo trémulas, em cima dele, viscosas indecisas, entre a alvura de um relâmpago e o acervo ténue de uma vela. Então, o homem salta para cima da cadeira como um lobo para cima de uma carcaça, põe as mãos em forma de concha a tapar a boca, entreabre-as e diz:
«Tenho os pés gelados. Tenho de adormecer e não quero. Tenho os dedos dos pés dormentes do frio, de estarem inertes, do frio a ser muito escuro. Quero deitar a cabeça na almofada e lembrar-me que dias assim são poucos. Quero adormecer sem ser de noite, sem ser de dia. O pardo da irracionalidade. Um quarto de hora até aquecer a alma com palavras jorradas aqui. Esta sala embrutecida como uma canção poeirenta, ver além da esperança, ver como sair deste sítio, ver beijos, ver sonhos, ver-me dentro de um sonho a beijar alguém. O que é tocar a tua pele? O que são beijos quando pende do céu um gelo antigo? Eu aqui, assim, sem nada que me encante, enfraqueço. E isso pode ser o começo.»
O emudecimento que se pôs era artificial. Havia pernas que mexiam, havia o resfolegar dos tecidos de encontro a outros tecidos, havia o vapor muito lento da máquina de café, haviam rostos parados, numa delonga quase cinematográfica. Cada rosto emboscado, à espera do recomeço ou do fim. O homem despe a gabardina. Pingos de água. Uma voz de meio-tom no fundo da sala que não chega nascer porque, entretanto, ele dá mais um salto e assenta os dois pés em cima da mesa. Argolas de toada rouca atingem esses rostos estagnados. O homem pega num livro e diz o nome do homem que está no livro: Paulo José Miranda. As pernas do homem afastam-se e flectem ligeiramente. O homem solta da sua boca as letras pretas do nome do livro: Vício. Há quem tussa e se encolha atrás de alguém. Há quem queira perguntar muitas coisas, há quem pense “desgraça”, há quem pense “morte”, há pensamentos que dizem “chega”.
Então as gentes separadas pelo medo e pela incredulidade vêem o homem encher o peito, olham as veias do seu pescoço a insuflarem e sentem nos seus rostos o hálito de uma voz agonizante a sair daquele tronco de carne afogueado. Diz: «Mas é precisamente isto que a leitura encerra em si mesma: a longinquidade do quotidiano insuportável. Não do mundo, apenas dos dias. Para carregar um dia, que pesa mais do que o mundo inteiro, mais do que séculos de história, é preciso ler. É uma perdição, sem dúvida, mas não há outro modo de não nos perdermos. E terrível é a vida quando, em completo desencontro com os dias, também não conseguimos ler; ou escrever, que é uma outra forma de ler, mais privada, mais egoísta, pois não há partilha ou apenas uma ilusão de partilha.»

sábado, outubro 23, 2004

Preciosidades


Quando a ponta do meu dedo indicador percorre a fileira de discos e escolhe um, o puxa à luz e o põe no leitor de CDs. Nestas ocasiões, em que as sextas-feiras descarregam a volatilidade da semana em jeito voraz, sabe muito bem pegar num disco destes e deixar a sua entoação pendurada no ar sobrante da casa. É muito mais que um acto isolado e rotineiro. Quando a voz volúvel de Mark Kozelek não se intimida, não segue regras, não aceita nenhum impedimento e segue quase febril, ao acaso dos meus gestos e da minha satisfação táctil. Quando um disco destes se ajusta perfeitamente ao termo da semana e inaugura outras passagens. Fazer deste instante uma festa. Repetir e misturar em violência as letras e a música, enquanto os segundos passam, enquanto as horas passam. Depois, algo aturdido pelo som hipnótico do piano, renovar a melodia muitas vezes nos minutos seguintes, deixá-la esmaecer, arremessá-la contra o silêncio e fazer dessa colisão uma raridade. Guardá-la dentro das mãos, e logo a seguir, sem fazer caso do meu próprio juízo, anunciar oficialmente a vinda do fim-de-semana.

«Tell me and take your time
Set free this soul of mine
Freeze frame this sedate moment
Lie me in your quiet ground

I understand your
Tired eyes for these
Tired homes and tired trees
I see the pain in those
Brown eyes
Fires burn in Autumm skies»

(Brown eyes, Red House Painters)

quinta-feira, outubro 21, 2004

Respirar fundo


Antecipar-me. Abrir a porta de casa, receber a frescura inaugural da manhã, acondicionar nos ombros a penumbra, o início do dia. O movimento oblíquo e ainda narcotizado da cidade, das pessoas, dos automóveis, vermelho, verde, percorrer a avenida da liberdade, ondear o marquês, subir as amoreiras. Recolher nos olhos, ainda apertados de sono, a proclamação de um dia chuvoso. Deslizar na A5, palmilhar a verdura de monsanto, observar o sono dentro dos carros que me ultrapassam, inventar na minha pele e nos meus gestos trôpegos a actividade. Tirar uma mão do volante, esfregar o rosto, oito menos um quarto em números alaranjados, descer a auto-estrada absorto na nebulosidade pensativa das tarefas do dia, reduzir a velocidade, curvar, perder a vista ao asfalto, fender o vale do jamor, estacionar o carro e pegar num segundo, em vinte segundos e oferecer-lhes a ondulação das árvores, o seu fôlego no regresso do encarvoado da madrugada.
Fintar o dia, amplificá-lo, ter toda a esperança num bolso do casaco e mostrá-la a quem passa, dizer bom dia, entrar no balneário, despir o casaco, esvaziar os bolsos. Calçar os chinelos, percorrer os corredores em direcção à piscina, oito horas, um arrepio, o meu reflexo no espelho que perfaz uma parede inteira. A piscina. As luzes artificiais amarrotadas na superfície da água. Verter os meus passos à borda de água. Mexer nela, onomatopeias subtis de prazer. Mergulho, mergulho, deixo-me resvalar até ao fundo, a linguagem voluptuosa da água sobre mim, um corpo sobre o meu corpo, o quase silêncio, a fuga aparatosa da realidade, da sua consistência, o líquido cerúleo num bailado eterno. Vir à tona, respirar fundo, mergulhar. E a serenidade a fortalecer-me todo por dentro, como essas coisas doces que me dizes ao ouvido. Respirar fundo, mergulhar.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Portas que se abrem


Não foram duas vezes. Talvez tenham sido mais que três, até. Não sei. Mas é com agrado que noto uma certa empatia entre o meu pensar e o que a Catarina escreve, acertadamente, no seu http://catarinaemfuga.blogspot.com. Acreditem, não a conheço pessoalmente. Acreditem, ninguém me pressionou a escrever estes aplausos. Portanto, o que me desviou dos comentários ao desarranjo das coisas e me impulsionou até esta evidente e gratuita oferenda de publicidade ao blog da Catarina? Uns dirão: «David, estás em falta com alguém e decidiste realizar uma boa acção para compensar actos indevidos». Outros, ainda num tom cordial mas já com pensamentos desviantes, opinarão: «É óbvio que o rapaz arquitecta o suicídio do seu próprio blog e quer encontrar outro que o possa perpetuar e melhorar em ideias e pensamentos». Os mais insolentes, quem sabe em estado exageradamente meditabundo, calçarão os seus melhores sapatos e sairão à rua, de megafone em punho, e gritarão: «Atenção, atenção! Há um louco na net, que perdeu a cabeça e, descaradamente, se pôs a publicitar um blog de outrem. Muito cuidado com ele.»
A verdade: para mim, será sempre empolgante e motivo de regozijo receber a sensibilidade dos outros. Por isso, obrigado Catarina, obrigado Nuno
http://www.aformadojazz.blogspot.com, obrigado Vânia http://palco-da-vida.blogspot.com, e os outros, cuja criatividade e vontade de partilha me inspiram aos melhores actos que a vida pode conter.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Músicas #02


E mais isto. São as sonoridades correntes cá do prédio, que desatam a espalhar o entusiasmo e a fabricar partículas de boa disposição. Os neutrinos da alma.

Músicas #01


Actualmente, cá em casa, escuta-se isto.

O jantar


Estas são as provas materiais que demonstram, sem margem para erros, a minha perdição. Digo mais: estas fotografias provam a minha vontade em continuar no cerne desta condição de maldito. A minha alma, quando se apercebe das maledicências que solto, aqui e ali, sem pudor nenhum, arrepende-se. Eu não. Eu sigo em frente, em busca de tais tesouros providenciais que ajudem à minha insanidade. Como verificas, há algum torpor e obscuridade nas evidências. Agora, que estás no conforto de um sofá ou de uma cadeira, e lês estas palavras, parece evidente que houve uma certa facilidade na obtenção das mesmas. Pois parece, mas não foi, caro amigo.
Naquele Sábado as horas passavam. Enquanto entrevia o atraso das divas fui dando achego ao preparo do jantar. Em lume muito brando mexia a colher de pau e pensava nestes meses todos passados ao abrigo da minha voz e de pouco mais. O tacho com arroz fumegava. Sem pressa nenhuma, assistia à subida do vapor que se perdia no abismo da chaminé. Pensava. Dava à colher e pensava. Lembrava-me de todos os Sábados e todas as sextas de todos os meses que sucederam e em que apenas esperava dois ou três copos de vinho, umas frases benditas e o arrojar do corpo à cama, de consciência limpa e devoluta. Assim eram as memórias do Inverno, do rugir da solidão, do hábito à solidão e do efeito viciante de bem-estar quando nela me banho. Neste Sábado, enquanto as meninas confundiam as nove com as nove e meia, nem me dei conta da invasão pacífica prestes a acontecer, nem da falta que momentos como este me fazem. No deserto e nos costumes de rapaz despovoado há mais a acontecer do que se imagina. Pensar, não pensar, deixar de pensar, deixar de ouvir, o silêncio, uma multidão de vozes, por fim, a paz. Depois de muito tempo a paz. Deixar de desejar, deixar de sonhar, deixar de fora a esperança. Deixar de ter medo. Na lentidão da noite e nesta viagem de pensamentos incertos, o jantar predispôs-se, mesmo à medida do toque da campainha.
Uma mulher, por mais vulgar que seja, encerra sempre um mistério. Exponencialmente, mulheres encantadoras como a Sara, a Cris e a Cláudia (que aparecem na fotografia) encerram os mais gulosos mistérios. Desde o primeiro abraço, enquanto se livram do casaco e do frio desajeitado de Maio, ao beijo que o meu rosto nunca se cansa de repetir, mulheres assim são os maiores acenos de bonança que um homem pode ter. De nada serve observar, no reflexo da janela, a minha burlesca figura, segurando uma colher de pau e pensar que ainda estou sozinho, como nas outras noites da semana. Elas tomam conta do espaço, do ar meio frouxo desse espaço e convertem-no num pequeno oásis. Se não for pelos gestos, se não for pela graciosidade, é, certamente, pelo tom de voz ou pela maneira enigmática – lá está o factor mistério outra vez – com que argumentam a sua presença. Tão bem quanto eu sabes ao que me refiro.
Entretanto, posta a mesa e servido o vinho, a naturalidade do evento começa a arrulhar os sentidos. O vermelho do vinho e o vermelho negro do sangue quente. É conhecida a influência do néctar de Baco nos corpos mortais. Normalmente, é a luz desbotada, são frases sem nexo e sem verdade, são vozes transformadas em gritos e são silêncios a amortecerem a conversa. Mas estas presenças femininas não pertencem ao comum das gentes. Se eu te disse, há pouco «encantadoras» devia ter escrito, a vermelho e em letras grandes, «mulheres inebriantes, encantadoras e inteligentes». Da singularidade que estes encontros produzem conservo as frases agrilhoadas como serpentinas no infinito da sombra, retenho os momentos de humor que apagam da pele todos os resquícios de aflição, surgem, em boa verdade, as partículas mais elementares de vida feliz.
E este céu que nunca mais se ajeita.

domingo, outubro 10, 2004

Diários


De vez em quando, algo nos cerca, regateando subtilmente a nossa atenção. Às vezes, mesmo quando parecemos envenenados e absortos na estridente vulgaridade deste nosso quotidiano, há algo que nos cumprimenta de forma afável, se apresenta e nos conquista para sempre. Esses momentos, esses impactos vigorosos que ficam eternamente registados na nossa vida, na nossa alma, e influenciam a nossa forma de ver o mundo, felizmente, se prestarmos atenção, ainda não são tão raros assim. É a música, é a pintura, é uma conversa, é um livro, são muitos livros, é um beijo, são muitos beijos, é uma boa refeição, um bom vinho, é uma fracção do silêncio. É um filme, como este http://www.motorcyclediariesmovie.com. E são todas as demonstrações de humanidade que habitam nele.

quarta-feira, outubro 06, 2004

A sombra do vento



Por favor, leiam este livro.

segunda-feira, outubro 04, 2004

À solta


Como as marés, venho desaguar às tardes de Maio sem noção do tempo. Caminho e destruo-me. Às vezes, acompanho os meus pés descalços na areia com pensamentos embebidos na brisa da tarde.
Aqui, nesta terra demorada, os corpos das mulheres são lembranças. Nesta luminosidade, resta em cada corpo martirizado, a ofensa do abandono. Lembro-me.

A carta


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural, e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem-haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saia da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e vazios, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros murmuravam. Bradaram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.

sexta-feira, outubro 01, 2004

E se não houver nada?


O que há a fazer quando não existe, realmente, nada para contar? Como sobrevivem as cartas, os encontros nos cafés, as reuniões entre amigos à mesa de restaurantes, os passeios de mãos dadas que roçam o viço dos jardins? Vivem de quê, os diálogos e os monólogos? Pergunto eu, como se consegue então suportar a ausência absoluta, firme, cientificamente comprovada, de factos novos na vida das pessoas? Como é possível tal coisa? Enquanto caminhava rumo ao meu covil, pensei numa escrita mais ou menos original, a ser especialmente elaborada como resposta ao teu último contacto. Afinal, eu é que me desleixei, eu é que olhei para o lado, eu é que mandriei, nesta história de regularidade escriturária. Vi o meu rosto transgressor em cada reflexo. Confesso a tormenta. Aconteceu-me até, vê lá tu, permanecer largos fragmentos do dia a pensar na remota possibilidade de, um dia – o mais inesperado de todos – assistir ao colapso estrondoso da nossa amizade. Às vezes dou por mim a imaginar que as relações têm garantia para uma vida, pelo menos para uma vida. E mesmo se, por instantes, somos enrolados no engodo do Amor ou da Felicidade ou das milhentas tarefas que a Vida nos proporciona e a deixamos à deriva, a Amizade, pensamos sempre que tem automatismos próprios e que não precisa de um retoque ocasional nem de constante atenção. Eu sei que nem a distância geográfica pode justificar a queda nesta esponjosa preguiça. Afinal gosto ou não gosto? Temos ou não temos saudades das pessoas? Não basta sabermos que está tudo bem, não é suficiente sentirmo-nos confiantes e «seguros» que aquilo ali à nossa frente é uma relação protegida por laços de ferro e que nunca irá ser destruída. E, no entanto, quantas vezes catapultamos a mente até à planície acessível do «está tudo bem, ela está bem, amanhã escrevo-lhe, ela deve andar ocupada com as suas coisas»? Mas o nosso caso é diferente, ripostas tu. Nós temos a certeza, nós seremos sempre amigos, dizes, digo, dizem.
Regresso às indagações, para que a linha mestra desta divagação não se diminua: como sobrevivem as gentes quando não acontece nada? O que é uma vida sem notícias, o que são os dias sem a algazarra e a gritaria de uma suculenta novidade, como pode fruir com a mesma sobriedade o espírito do Homem quando, verdadeiramente, nada se passa que mereça uma mensagem escrita, quanto mais uma carta? Se calhar, perante a vivência na capital cultural europeia, vai parecer-te extravagante este desassossego de aldeão. Se calhar, traduzes esta carta a um francês teu amigo ou teu amante (ou o que seja) e os dois vão até à varanda atirar à rua duas, três ou até mais gargalhadas. Assim, como dois alienados, tombando o corpo sobre o varandim, rindo, gozando, troçando destas palavras, de mim. Não precisas dizer que não, que estou parvo por te afrentar com estas dúvidas, estas fantasias. Não são dúvidas. São muito menos fantasias, que pensas tu?
Onde é que eu ia? Sim, tentava encontrar uma hipótese que desse conta das questões acima escritas. Não dizes nada? Observas-me nesse tom apalermado, sem saberes o que fazer, que gestos proferir. Até mete impressão, até metes impressão. A tua letargia, o teu riso que agora se transfigura e aparece como vergão, subtilmente, no meio da testa. Impressionante. Pois é, não vejo agora esses dentes, já não noto a mesma desenvoltura, a mesma firmeza e postura de brincadeira. Não me distraias, ouviste? Deixa-me terminar este escrito. Deixa de tagarelar ao meu ouvido, sai de dentro da minha cabeça, de dentro do meu sangue. Comporta-te.

quinta-feira, setembro 30, 2004

A luz da Primavera


Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos. Já nem sei bem que escadas longas eram aquelas, nem sei se fiquei prostrado a olhá-la, enquanto ela adejava um pé atrás do outro em cada degrau. Vou imaginar que naquele céu de Março os meus olhos eram infalíveis e eram a minha esperança de ter na palma da mão um mundo feito só de arestas. Plantado no sopé cinzento das escadas eu acenava, punha o meu melhor sorriso e soletrava Até logo a fingir que ela ouvia. O sol desmanchava-se sobre o aterro de pedra, aquela monumentalidade toda, e nela o meu amor pecaminoso a caminhar para a Faculdade. Um clarão dentro da luz. O seu aceno, dentro do seu corpo torcido, alinhava-se com as minhas sobrancelhas esbugalhadas, que lhe entornavam qualquer coisa, palavras telepáticas «Estou aqui» ou «Vai, não te perco de vista, vai.». Dentro dos dias dourados, aquele momento foi o menos rutilante. Cada vez mais um corpo ligeiro, disforme, a agregar-se sem pudor ao cimento das escadas, cada vez mais eu a ofegar palavras de apelo, de saudade, de intenções predadoras. O meu tempo, diante da pedra e do sol batendo na pedra, tinha terminado.
Defronte destas barras de metal penso: o tempo é sempre mais breve que a eternidade dos homens. Enquanto ponho os meus dedos amplos e sinto neles o ferro inspiro o ar rude da prisão. Nos corredores as pegadas do mal. Nos uniformes a imobilidade do tempo. Nem sei porque recordo, não sei porque insisto na tua lembrança. Já não subsiste em mim o tom morno de Março. Há os meus passos no passadiço de metal, há a minha mão aberta ondulando nas barras de ferro, há a rotina como um monstro debaixo da areia numa praia deserta. Estou preso há mais de trinta anos. Dentro do quotidiano e da aspereza do quotidiano, dentro destas paredes e dentro destas vozes ao longo do dia há noites em que me atrevo sonhar. E hoje, que já nem sei se os meus cabelos estão encanecidos de sobrevivência ou de dor, acordei trôpego a lembrar-me de umas escadas e de letras azuis no cimo de uma fachada com muitas janelas, que diziam Faculdade e diziam, rasgando a calmaria do sol, Faculdade de Ciências. O pior que aqui pode suceder são as lembranças. Pensar que o tempo é mais breve que a eternidade dos homens, e deixar de mastigar, e deixar de querer prantear o uniforme sob um sol mais antigo e contíguo aos muros deste sítio, deste fio de terra. Acordei inchado de terror e de esperança. Não sei porquê. O tempo será mais lento que a eternidade dos homens.
Na bacia da minha cela entornei o meu rosto. Enxaguei trinta anos, procurei com a mão a toalha e dos olhos retirei o teu corpo torcido a meio das escadas, limpei as sobrancelhas e a testa. Com as duas mãos à frente das minhas outras mãos dentro do espelho asseei da memória o teu vestido às flores, a mochila que pendia nas tuas costas. Com o meu rosto malhado e a pingar esse sonho, essa memória, peguei na toalha mofa e abafei o som dos teus sapatos de verniz, crepitando a pedra, escorri da minha pele o teu aceno, à entrada da Faculdade de Ciências. Entrar nesse espaço amplo de descoberta, dizias. E eu pego na lâmina e raspo da minha face essas palavras. Levanto com os dedos esta carne rugosa e expulso do rosto os restos do teu sorriso, bano do meu anoitecer o teu aceno, a tua luz. Outono, Inverno, Verão, Outono, Inverno, Verão.