sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Um longo Domingo


É assim que deve acontecer. Quando o filme se escapa da tela branca, se espalha pelas cadeiras cada vez mais vazias e se encosta a nós, pedindo abrigo. A querer ampliar o seu espaço, a querer prolongar-se como os humanos se querem prolongar ao longo da vida. Quando o filme não padece na oclusão das imagens nem no acender das luzes, como se as imagens, recentemente fundidas em nós, também quisessem percorrer o mesmo caminho que o nosso até à rua, descessem as escadas do metro e vissem o átrio completo de luz e despojado de gente, e também espreitassem o negro do túnel e o metal oleado dos carris, tal como nós, aguardando a golfada de ar quente, que antecipa a fereza da carruagem; como se as personagens e cada uma das suas frases exigissem outra dimensão, aparentadas aos nossos próprios passos na rua fria e muda; é quando os pormenores da história se expelem como estilhaços para fora do rectângulo branco à nossa frente e parecem ganhar a forma de outra companhia, de outra presença, que querem para sempre, unirem-se à nossa voz, aos nossos gestos, aos nossos desejos.
Era sempre assim que devia acontecer. Um filme a querer perpetuar-se em nós, uma sucessão de imagens e vozes e lugares que se arremessam ao nosso caminho e não se desviam, não se querem desviar. Não querem partir sem se certificarem que o nosso emudecimento momentâneo é de espanto, é de encantamento, é de reconhecimento.
É de querer viver muito.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O pacto da eternidade


Quero lembrar-me: a porta da sala a abrir-se, o meu avô sentado numa poltrona vermelha, a balbuciar injúrias inofensivas para dentro da televisão, aos homens de gravata e de discursos eloquentes. Quero que a lembrança se afirme na minha pele e me conte: a porta que se abre completamente e se esbate contra a parede, o meu corpo frugal desliza, esconde-se, monitoriza com redobrada vigilância os gestos muito lentos do meu avô. Na sua face uma brusquidão. Nos seus olhos a fluência das imagens, das notícias. Encosto-me atrás da estante; espreito, ouço a sua voz esvair-se para dentro do ecrã, vejo nos seus óculos uma revolta, vejo esse tumulto coado mas não me assusto, sinto a sua indignação mas não reajo. Espreito, através dos livros de Mao Tse-Tung, através dos livros de Álvaro Cunhal, através das molduras empoeiradas. Espio-lhe o corpo embutido no couro escarlate, a barriga debaixo do colete verde e o boné, abandonado na sua cabeça, como albergue evidente da calvície. Quero recordar-me, quero muito recordar-me: então, ele, que agora atira gargalhadas ao ar e com elas faz estremecer os móveis escuros, diz «vem cá, rapaz», entre a pausa das vozes magnânimas vindas da caixa de luz diz «senta-te aqui, pega nesse banco»; é uma indução em jeito manso, é uma súplica embargada pela corrente alegre da boa disposição.
O meu avô, enfiado sem pressa nenhuma naquela poltrona majestática, em frente ao televisor. Eu sentado num banco de madeira, ao lado dele, imóvel, com as mãos entrelaçadas no colo, aguardando um qualquer gesto, um qualquer indício de movimento, que me faça saltar daquela pose de mimo. Eu e o meu avô, observando as notícias que se colam ao rosto como lenços de cetim e salpicam as paredes da sala, atrás de nós. Agora lembro-me: numa faísca de silêncio, o meu avô levanta o braço. Era um meneio feito de tempo, feito de memórias, assente na dignidade dos anos e na esperança sempre viva desses anos. Aquele braço no ar a levantar com brio a mão, emaranhada em todos os Invernos e todos os Outonos. Lembro-me, quase sem querer: aqueles dedos como labirintos esponjosos de uma existência sobrevivente, bordejada pela inconstância da vida, como os próprios comentários vindos da rua, ufanos pecadilhos da duração humana. Lembrar-me, pegar nas memórias dessas mãos que cinzelavam perfeitamente as palavras, e a demora entre as palavras, entreter-me, nestes dias do recomeço, a olhar os rios de sombra, a escutar-lhes a vontade férrea de serem muito mais que linguagem e indicações.
Desfaleço. Quando fecho os olhos e me imagino ainda pequeno, a reter no corpo as vibrações de gente maior que a minha voz. Desvaneço e sigo o torcer do tempo em busca da eternidade.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Recomeço

(ou a história de uma interrupção longa demais ou a tentativa de absolvição para algo indesculpável)

Ainda que os leitores assíduos deste blog não sejam mais que dois – numa hipótese mais optimista talvez três – sinto que, se não largasse aqui uma tentativa de explicação para este hiato temporal desde a última publicação, estaria a ser evidente demais no meu desleixo.
O que aconteceu foi o seguinte: num dia de Dezembro lembrei-me de fazer uma tosta de queijo e fiambre. É certo que o clima ainda estava longe da aspereza glacial que hoje é motivo de conversa em cada esquina desta cidade. Mas deu-me para lanchar naquele dia, mal sabendo no que me metia. Um dos milhares de actos quotidianos que, à partida, são do mais fútil e inócuo que existe. E por ser assim, os gestos que se fazem aquando destas tarefas rotineiras são tão automáticos que nem pensamos neles. Gestos como o de rodar uma maçaneta ou o de enfiar dois dedos na asa da chávena e levá-la à boca são imediatamente arrumados num desvão do cérebro até que algum psiquiatra necessite de fazer uma regressão através da hipnose e descubra que há algo dentro de nós que não está muito bem nivelado. Abrir a tostadeira, meter lá dentro o pão, fechar a tostadeira, fazer outras coisas mais importantes, entretanto. Parece simples, parece brincadeira de crianças, ou de bebés até. Mas, não são assim tão poucas as vezes que destas funções mundanas resultam graves incidentes. Um curto-circuito, por exemplo. Não foi mais sério porque o quadro da luz disparou e a coisa morreu ali. No momento imediato pensei: «tenho demasiados aparelhos ligados. Desligo o aquecedor e a tosta continuará o seu caminho.» Assim fiz. Quando voltei a ligar o quadro a luz voltou a desligar-se. Foi quando notei que, afinal, não tinha apenas uma tosta no menu. Uma secção do fio de alimentação à corrente eléctrica estava também a ser tostado. Obviamente, seguro que daquele meneio tão habitual somente resultaria o estancar da fome (ou gula) nem reparei que o cabo, meio enovelado por falta de arrumação competente, tinha ficado trilhado e derretia com o mesmo compasso do queijo.
Pois, mas que tem isto a ver com o «silêncio» abrupto do weblog? Toda a gente sabe que os produtos informáticos são hiper-sensíveis. Todos os que lidam diariamente com computadores (como eu) deviam saber que existem umas coisas que se chamam UPS, que protegem os aparelhos informáticos, precisamente contra os atentados lancinantes da rede eléctrica. Caros amigos: eu não tinha nenhum tipo de segurança, e, azar dos azares, paguei – e ainda estou a pagar – bem caro por isso. A motherboard do computador torrou, tal como a tosta e tal como o fio de alimentação à corrente. Acresce a isto tudo o facto determinante de ter comprado a peça (e o resto dos componentes) no Porto, numa daquelas betesgas de informática, erigidas num dos manhosos Centros Comerciais da zona mais decadente de Gaia. Tudo com o objectivo sôfrego de conseguir arrepanhar uma ou duas centenas de euros. E acontece-me isto, que não sou propriamente dado a economias quando chega a altura de investir em informática. Detesto lugares-comuns mas este tem que ser aqui escarrapachado para ver se aprendo: o barato sai caro.
Refeito do desgosto, levantada a cabeça, dissecado e depois sarado o trauma, tratei de levar o acessório à loja na expectativa de a ter reparada ou substituída brevemente. Meteu-se o Natal, meteu-se o final de Ano e a seguir, um tempo em que é costume haver no economato português uma «actividade» chamada balanço. Este período «transitório» costuma durar uns dias, uma semana, vá lá. Hoje, que já passaram duas, contabilizei, até agora, dois pesadelos cujas particularidades agora não me recordo mas, na essência, tinham a ver com falências de lojas de informática e grandes espaços despojados de qualquer tipo de móveis, secretárias ou computadores. Lembro-me de acordar a meio do sonho, ainda com o corpo trémulo e os olhos obstruídos pelas lágrimas, a gritar «não me levem a motherboard, por favor. Voltem.» Portanto, aguardo notícias.
Se escrevo estas palavras e as publico agora é porque uma alma altruísta me emprestou um computador. Pessoas insistiram para que fosse a um cibercafé ou que ficasse até mais tarde no emprego e escrevesse lá, que permanecesse indiferente ao meio ambiente, que ignorasse as conversas estrídulas das pessoas e que não lhes ligasse nenhuma quando espreitassem ou viessem perguntar «o que escreves?», que fingisse não sentir a luz cortante e espasmódica no rosto, que, no fundo, abdicasse do conforto de casa, que tanto tempo levou a compor ao meu gosto. Afinal, não é isso que fazem os grandes escritores, perguntavam as pessoas, algo desapontadas. Pois, mas eu não sou um grande escritor e essas pessoas foram instantaneamente recambiadas para o fundo da lista de contactos (é verdade, a minha lista de contactos tem um fundo), à conta do temperamento muito excêntrico e muito susceptível do autor desta história.
E agora que o número de leitores deste weblog se reduziu dramaticamente não me resta outra alternativa senão começar de novo o testemunho e o relato destes dias cada vez mais desordenados.