quinta-feira, setembro 30, 2004

A luz da Primavera


Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos. Já nem sei bem que escadas longas eram aquelas, nem sei se fiquei prostrado a olhá-la, enquanto ela adejava um pé atrás do outro em cada degrau. Vou imaginar que naquele céu de Março os meus olhos eram infalíveis e eram a minha esperança de ter na palma da mão um mundo feito só de arestas. Plantado no sopé cinzento das escadas eu acenava, punha o meu melhor sorriso e soletrava Até logo a fingir que ela ouvia. O sol desmanchava-se sobre o aterro de pedra, aquela monumentalidade toda, e nela o meu amor pecaminoso a caminhar para a Faculdade. Um clarão dentro da luz. O seu aceno, dentro do seu corpo torcido, alinhava-se com as minhas sobrancelhas esbugalhadas, que lhe entornavam qualquer coisa, palavras telepáticas «Estou aqui» ou «Vai, não te perco de vista, vai.». Dentro dos dias dourados, aquele momento foi o menos rutilante. Cada vez mais um corpo ligeiro, disforme, a agregar-se sem pudor ao cimento das escadas, cada vez mais eu a ofegar palavras de apelo, de saudade, de intenções predadoras. O meu tempo, diante da pedra e do sol batendo na pedra, tinha terminado.
Defronte destas barras de metal penso: o tempo é sempre mais breve que a eternidade dos homens. Enquanto ponho os meus dedos amplos e sinto neles o ferro inspiro o ar rude da prisão. Nos corredores as pegadas do mal. Nos uniformes a imobilidade do tempo. Nem sei porque recordo, não sei porque insisto na tua lembrança. Já não subsiste em mim o tom morno de Março. Há os meus passos no passadiço de metal, há a minha mão aberta ondulando nas barras de ferro, há a rotina como um monstro debaixo da areia numa praia deserta. Estou preso há mais de trinta anos. Dentro do quotidiano e da aspereza do quotidiano, dentro destas paredes e dentro destas vozes ao longo do dia há noites em que me atrevo sonhar. E hoje, que já nem sei se os meus cabelos estão encanecidos de sobrevivência ou de dor, acordei trôpego a lembrar-me de umas escadas e de letras azuis no cimo de uma fachada com muitas janelas, que diziam Faculdade e diziam, rasgando a calmaria do sol, Faculdade de Ciências. O pior que aqui pode suceder são as lembranças. Pensar que o tempo é mais breve que a eternidade dos homens, e deixar de mastigar, e deixar de querer prantear o uniforme sob um sol mais antigo e contíguo aos muros deste sítio, deste fio de terra. Acordei inchado de terror e de esperança. Não sei porquê. O tempo será mais lento que a eternidade dos homens.
Na bacia da minha cela entornei o meu rosto. Enxaguei trinta anos, procurei com a mão a toalha e dos olhos retirei o teu corpo torcido a meio das escadas, limpei as sobrancelhas e a testa. Com as duas mãos à frente das minhas outras mãos dentro do espelho asseei da memória o teu vestido às flores, a mochila que pendia nas tuas costas. Com o meu rosto malhado e a pingar esse sonho, essa memória, peguei na toalha mofa e abafei o som dos teus sapatos de verniz, crepitando a pedra, escorri da minha pele o teu aceno, à entrada da Faculdade de Ciências. Entrar nesse espaço amplo de descoberta, dizias. E eu pego na lâmina e raspo da minha face essas palavras. Levanto com os dedos esta carne rugosa e expulso do rosto os restos do teu sorriso, bano do meu anoitecer o teu aceno, a tua luz. Outono, Inverno, Verão, Outono, Inverno, Verão.

Melancolia


«Como a solidão, este jardim abandonado anoitece. Guardo derrotas como se guardasse segredos. Anoiteço sobre este jardim. Agora, entre as ruínas, sou igual a estas árvores que morreram no instante em que tudo deixou de fazer sentido. No momento em que partiste, deixei de fazer sentido.» in Antídoto, de José Luís Peixoto
Sabia que, durante a leitura deste livro, encontraria nele fragmentos de mim, estilhaços daquilo que vou sentido, nestes dias estranhamente mornos de Outubro. Já ia lançado ao sono e não resisti. Nestes instantes reconheço a vida com qualidade. Na luz como um lençol fresco e ténue sobre mim, no silêncio que a noite alberga ao fim de um vendaval de muitos sons rudes da cidade durante o dia, nas palavras dos outros quando reflectem o meu pulsar pelas coisas simples. Nestas imperceptíveis coisas eu me levanto, na invisibilidade das fendas na calçada eu fujo ao negro, eu interrompo estes diálogos mudos dentro da minha cabeça, eu imito um sorriso antigo e sou um sorriso como a felicidade memorial. Eu tenho esperança. Eu deixo de esmorecer, eu impeço-me do trago afável da solidão quando vivo estas coisas simples. Estas coisas pequenas, de prazer imperecível, como as mais exuberantes descobertas nos períodos essenciais da nossa existência, como pensar naquilo tudo que me faz mal e não deixar, mesmo assim, de crer num tempo longe deste e melhor que este, e mais feliz que este, e mais completo que este. Nas coisas tão pequenas do quotidiano. Do quotidiano, aparentemente sem esperança nenhuma, se desmascarar e não ser tanto de correria, tanto de diálogos bravos e desconexos dentro da minha cabeça, não ser tantas vezes o letargo daqueles que pensamos estarem mais próximos, de dias inteiros às escuras com um saco negro pelo rosto abaixo, pelo peito abaixo, pelo corpo inteiro abaixo até ser de noite quando o som que chega até mim dizer o contrário. Noite dentro do dia. A bruma dentro da luminosidade. Uma luva preta que sufoca esta pedra branca acabada de sair da espuma do mar.
Esticar as pernas e encostar a cabeça. Decliná-la. A ligeireza da manhã, a cabeça e o corpo entorpecidos pelo cintilo do sol no vidro da carruagem, no rosto, na pele, sob a pele, dentro das veias, dentro do sangue, na velocidade da corrente do sangue. O café amargo doce amargo nos lábios, na língua, sair do escuro e abrir a porta, ver uma árvore no quintal em frente, e ouvir nela pássaros, ver o verde, ver o Outono parecido com a Primavera, ver em todos os dias semelhantes muitas diferenças. Como chegar à estação e cruzar-me com dezenas de pessoas todas iguais e logo a seguir muito diferentes como se existisse dentro delas um ódio muito antigo, olhar em frente e sentir na cara o apego das suas conversas, da sua melancolia, do seu aroma, das suas dúvidas. Estagno perante o vapor das pessoas. Às vezes, fico. Tantas vezes dou um suspiro como que a salvar-me, ou a fazer de conta que há-de estar próxima uma correnteza de pequenos prazeres e que eu possa embarcar nela. E quando colocar os dedos nesse curso o sentido da minha vida será o meu jardim.
«Tenho medo de que não estejas aqui, neste banco negro, ao meu lado, dentro desta escuridão onde também estou. Mas eu sei que estás aqui. Se quisesse podia dar-te a mão. Se quisesse, podia dizer o teu nome. Mas eu não sei se estás aqui. Permaneço. Imóvel. Em silêncio. Cheguei para sempre a este jardim e quero que esta noite negra continue para sempre e que nunca tenha de saber se este rosto, aqui, ao meu lado, dentro da escuridão, és tu ou a imagem de ti nesta memória que está aqui ou que sonha que está aqui.» in Antídoto, de José Luís Peixoto.

Sonhar o imprevisto


Fechar os olhos e deixar Aqua Bassino a tocar. Chegar a casa, fechar os olhos e escutar doses felinas de trompete, assim perto do relaxamento. Chegar do sol em Lisboa. Chegar de dentro da tarde, finalmente primaveril, ouvir as pessoas no jardim, contemplar um cão saltar as sebes com vigor e com saúde, ver que a brisa morrinhenta se esbate na cara e sentir que ela suspira, que eu suspiro há tanto tempo por algo que nunca irá acontecer. Fechar os olhos. Estar no Chiado, descer e subir sozinho o Chiado, sentar-me na esplanada, ler as histórias mais ou menos inesperadas de Clarice Lispector, escutar notas de piano ao invés das vozes das pessoas. Estou no Chiado nesta primeira tarde límpida do ano. Se não observo nada de novo, sinto algo novo. Se tiro os olhos do pequeno livro de capa preta e olho à minha frente não vejo nada novo, mas parece que sinto algo que muda. Algo que envelhece. Como eu nestas horas do desalento e dos monólogos interiores. Gostava de dizer «ai, Lisboa, dá-me cada novo tesouro e cada vez melhor», mas fico-me pelo silêncio, fico no silêncio.
Fechar os olhos, inclinar a cabeça, escutar o enlevo da música de Aqua Bassino. Eu queria dizer tanta coisa. De olhos fechados, a ver as pessoas muito longe, as pessoas mudas quase espectros na minha memória. Serei eu, pergunto. Serei eu perante as pessoas, pergunto.
Passo aos meus ligeiros acasos e transformo-os em grandes acontecimentos. É uma questão de sobrevivência. Então aqui vai: ontem voltei a cruzar-me com ela. No bar terraço do CCB, dividia a atenção entre o rio, a movimentação parcimónia dos barcos no rio e as páginas finais do livro de Philip Roth, quando a vi entrar. O mesmo estilo elegante e negro, o mesmo olhar felídeo, o mesmo sorriso tímido e quase quase libidinoso. Ao seu lado marchava um rapaz. Calças de ganga azul claro, ténis azul florescente, camisa branca com riscas horizontais vermelhas e riscas verticais azuis (ou seria ao contrário?) e, como remate final, não menos importante na concepção visual do homem, um belo e luminoso par de meias brancas. Não sou de julgar os outros pela vestimenta. Mas sempre entendi o vestir como antecâmara à maneira de ser de cada um, aos seus gostos, à sua sensibilidade. O vestir como curta-metragem do ser. E esta descrição serve apenas o propósito, honesto e simples, de te fazer entender o meu choque. Então não havia de se colar ao meu corpo o abalo depois de apreciar tão extravagante diferença de estilos entre os dois? O passear elegante e cheio de subtileza dela lado a lado com o ressonante marchar do namorado. No primeiro e sempre desembaraçado ímpeto ri-me, claro que me ri. Tal como gracejei todo por dentro quando, do canto do olho, o vi, com aquele corpo grosso e liso de qualquer subtileza, beijá-la e agarrá-la como quem agarra e beija um tesouro mas não sabe que é um tesouro. Não foi ciúme embora também não negue que desejei estar no lugar dele. Aliás, mesmo sem o conhecer, digo já que sou eu mais merecedor do lugar do que ele. Mas estas posições privilegiadas de amante de mulher encantadora não se merecem, conquistam-se. Ele conquistou-a e eu não. A única coisa que alcancei foi o meu nome e o meu rosto na memória dela. Sim, é verdade, ela ainda se recorda de mim. Continuei a minha leitura, em passos largos para o grande final de «A mancha humana». A minha mente saiu do bar terraço e dos ombros descobertos dela, e cravou-se num lago gelado nos Estados Unidos, na conversa tensa entre dois homens que lá havia. E por saber que tinha nos dedos as últimas páginas de um bom livro, no meu sentir, na minha disposição, no meu olhar brilhou uma certa melancolia. A mesma que sempre me acompanha quando as páginas finais de um bom livro correm mais depressa ainda que a vontade de o terminar. Foi com esse olhar, mesclado de bruma e satisfação (pelo prazer que é ler um livro assim), que ela me abordou, dizendo que me tinha reconhecido há pouco mas só agora, enquanto passava, teve a certeza que era eu. Fez uma observação qualquer sobre os jornais que estavam em cima da mesa e eu sorri. Na curteza do momento, parte de mim ainda estava acocorada, à escuta, na superfície gelada daquele lago, e a outra parte a refazer-se do segundo pasmo da tarde. Ela pareceu-me tímida mas ainda conseguiu dizer que ia trabalhar mais um pouco e eu voltei a sorrir, dizendo-lhe que ia continuar a minha leitura. Até logo, soprei-lhe, na voz mais calma que pude encontrar, assim de repente.

quarta-feira, setembro 22, 2004

Vícios


Na minha pele aplausos. Nas veias salientes das minhas mãos muitos aplausos. Hoje, em poucas horas, absorvi dois espectáculos, que ainda mareiam no meu corpo como se não admitisse sequer uma gota de cansaço. Fernanda Torres entra em palco. Fernanda Torres, filha da eterna Fernanda Montenegro, os mesmos olhos fundos, o mesmo corpo esguio, a brotar sensualidade em cada instante e em cada fracção gestual. Impõe-se logo ali, naquela entrada retumbante, estrondosa, desbragada, o primeiro ímpeto. Um desejo quase voraz de ignorar os outros espectadores, lançar-me ao palco e fazer resvalar a minha língua naquelas pernas até que a boca ficasse absolutamente enxuta. Aquilo à minha frente não era uma mulher, era uma escultura de Rodin. Aquelas longas pernas, balanceando por baixo da mesa de vidro em cima do estrado, não eram pernas de mulher. Aquilo era a memória do trajecto hipnótico dos dedos de Davinci, delapidando a pedra até que dali se vislumbrasse a perfeição. Como me apeteceu aplaudir tamanha oferta. Tive que cerrar as unhas no veludo da cadeira e descansar o demónio que queria romper o meu ventre. Tive que cruzar as pernas, disfarçar o calor que vinha de dentro, que açulava, violento e rude, à minha face e ao meu pescoço, tive que me tocar nos ombros e entrelaçar os dedos das mãos, acalmar um rio de vontade que crescia e crescia e se tornava um gigante incontrolável, quase irremediavelmente incontrolável. Fernanda Torres, e a sua voz acabada de chegar dos céus (ou dos infernos), a ditar histórias de vida, alicerçadas no sexo, na liberdade, na negação veemente da hipocrisia e do pudor. A actriz sozinha em palco, debruçada em modos provocantes, sobre uma mesa de vidro, agitando as palavras e alvoroçando a pacatez da assistência, a incitar a luxúria como se disso dependesse a sua vida, a firmar as histórias na memória de quem assistia com todo o arrojo imaginável. Eu encantado, eu e o demónio do desejo a alongar-se, a crescer muito depressa. Cada tonalidade de voz na palavra certa, cada história rica de personagens, de cores, de feitios, de situações despudoradas. De sexo. Aquilo tudo encheu o palco e atirou erecções à plateia, aquela abundância de imagens que se soltavam, naturais, dos lábios encarniçados de Fernanda, aquele chorrilho de afrodisíacos, de alegorias tão nítidas que me incomodavam de prazer. Aquela mulher, a abarcar todos os olhos, todas as mãos, todos os ouvidos, aquela mulher a ensopar de desejo cada um de nós, aquela mulher, parecida com um beijo, muito parecida com o amar, muito próxima do Amor.
Não me lembro de tanto vigor na aclamação final. Já assisti a muitos espectáculos e nunca tinha sentido tanta energia a ir e a vir, palco, plateia, palco, plateia, palco, plateia.
Do Teatro Dona Maria, ainda com o apetite em mim que desbotava a cidade, subi até ao Largo de Camões. O céu esmaecido, a convidar chuva, a dar eco às vozes que, de outra forma, seriam sussurros, seriam silêncio. A Ana Rita não tinha palavras, dizia que não tinha palavras e eu acreditava. Eu a rebolar entre os comentários e os risos espontâneos dela. Eu estava fervente, não dava conta da noite a esfriar, balbuciava palavras como se bebesse delas a minha luz. A conversa a fluir, as gentes a convergirem na Praça Luís de Camões, formando grupos, juntando acenos e risos. De repente, imerge duma esquina ou detrás de um carro que passa na rua, uma artista de rua, transportando, frenética, o seu carrinho de sonhos e marionetas. Não passaram dois minutos. O céu amareleceu, do interior negro dos automóveis olhos que brilhavam. Não passaram, por certo, mais que dois minutos. À volta da artista de rua e da sua carroça, que me fez muito lembrar um cenário dos filmes de Tim Burton, as pessoas, uma multidão. E a artista, com um nariz abrupto a sair do rosto, no centro da praça, pôs-se a desenlaçar os bonecos. Deu-lhes vida, fê-los gesticular e guinchar, tal e qual nas obras de Burton.
Aplausos. Na minhas mãos aplausos, às noites feitas com o mesmo ardor que esta.

Lisboa, muitas vezes Lisboa

Posted by Hello

Quando a chuva não é esperada tudo pode acontecer. Lisboa quase se detém, a olhar os pingos que caem do céu, sem nenhum acanho. Lisboa à chuva não faz sentido. Lisboa à chuva, em Maio, não faz sentido.
Hoje, que o logro do clima trouxe o caos e trouxe ao olhar das pessoas o desapontamento, pus-me à procura da melhor resposta às tuas palavras. Comecei a despreocupar-me das gentes que passavam, no regresso a casa. Olhava o chão, atento às frases e às palavras, punha os passos ao pendor dos textos. Não me lembrava dos prédios que ombreavam entre si em busca da noite, sôfregos, inquietos, sombrios. Esquecia-me dos passeios, das montras e das coisas dentro das montras. Queria apenas responder-te, chegar a casa com a missiva já pronta, sentar-me em frente ao teclado e só parar o acto do dedilho quando a chuva voltasse ao mesmo sítio de onde veio. Pois foi isso. Tentei absorver o impacto do meu silêncio. Tentei muito abrir o silêncio dentro de mim e oferecê-lo aos outros. Gritar-lhes um bafo de ausência. Desprezar as sextas-feiras chuvosas, ignorar o trânsito, abstrair-me dos fantasmas que olhavam o mesmo mar que eu, responder indiferença à altivez dos outros. Eu quis só pensar na tua carta e na minha resposta à tua carta. E assim fiz. Estas palavras como companhia, estas frases como uma música que acorda comigo e cresce até o dia findar, este texto como protecção aos dias enganadores. Tive que deixar de saber se era já noite ou se era a tarde a entrar na noite. O texto dentro de mim a aumentar, a aumentar, como este céu encoberto a crescer, a crescer. O cruzamento de muitos corpos apressados, o ruído mecânico da cidade, o ruído sofredor da cidade, o som oprimido das ruas que se agitam com os desejos das pessoas. Penso nestas palavras e atravesso a rua. A obscuridade dos prédios sobre o meu corpo, sobre a minha pele, os meus ossos formavam gestos e a minha roupa ia ao seu encontro, palavras, palavras, dentro da minha cabeça palavras. Chegar aqui não foi num instante.