segunda-feira, setembro 12, 2005

A pele por baixo da minha pele


1. O Dr. Salvador arreda os olhos e abana a cabeça. Junho, de tons ocres, ar espesso e volátil. Diz-me meias palavras. Diz-me «não devias, José», diz-me «eu acho que é um risco voltares às lides da nossa paróquia». Tenho os braços atrás das costas, Junho, de paladar seco, a luminosidade veraneante na cal da aldeia. Tenho a janela aberta nos meus olhos e nas suas rugas. «Não podes, José». Repetia «não», redizia «a tua saúde, José», alimentava a sua preocupação no meu rosto pálido e pensativo. A janela entreaberta, os cães à sombra e nas suas línguas o retinir da tarde quente.
Agradeci-lhe os conselhos e segui. Tinha no corpo e na mente o vício. Tinha na minha língua infindáveis discursos. A vontade de sorver a felicidade dos outros e ouvir o meu Senhor, lé em cima, clamar o Amor, a celebração do Amor. Sai do consultório do Dr. Salvador pleno de convicção. Será a minha última cerimónia. Amanhã, Junho, de águas tépidas, amanhã, nestes dias abrasivos e longos, vou casar o Daniel e a Celeste. A minha última cerimónia.
2. Estou nos meus aposentos e assento as vestes neste corpo dormente Na igreja aloja-se um murmúrio solene. Vício, vontade, alegria. Neste quarto pequeno preparo-me, e nas paredes o som dos miúdos, as cadeiras, o eco que mergulha na imobilidade dos santos. Anos, anos, o meu vício nestas paredes, nos detalhes domados, no pó assente, anos, anos. Tenho no corpo o vício da felicidade alheia. Preparo-me, benzo-me. A minha última cerimónia. Emociono-me. O meu corpo soterrado de memórias. Os meus dedos amparam o livro do Senhor. Os meus passos fora de mim, de encontro aos móveis escuros, os meus passos como os últimos passos de toda a minha vida. A minha pele treme, a pele por baixo da minha pele treme, o vício, a alegria dos outros, o meu néctar, a minha vida inteira.
3. Saio, fecho a porta e não ouço eco atrás de mim. Dirijo-me à tribuna, o murmúrio a elevar-se, uma onda de vozes baixas, uma duna de bocas misturadas com os olhos brilhantes todos juntos à espera, cravados em mim. A iluminação da felicidade, o meu vício. Sinto-me nos gestos tímidos das pessoas sentadas à minha frente. Dito palavras, arranjo o meu último discurso e arremesso-o aos noivos. Daniel e Celeste à minha frente, felicidade, ânsia, a opulência do silêncio, as minhas mãos trémulas, Deus, Senhor. Amai-vos, perco o tempo e perco as palavras. Daniel e Celeste estáticos são duas sombras, à espera, à escuta. Amai-vos e respeitai-vos, a igreja repleta, um abafo de olhos e de fatos cinzentos, azuis. Amai-vos e respeitai-vos até que a morte vos separe, Daniel e Celeste. A minha voz inaudível. O peso nas pernas, no peito, dentro do peito, a querer sair. Ao fundo, o Verão inteiro a querer entrar. Penso: não quebres agora, José. Deus, vício, Senhor, Deus. Amaino as mãos a tribuna. Declaro-vos marido e mulher. Palmas, sorrisos, beijos, o Amor, a felicidade, o meu vício, inclino-me sobre a tribuna. Tombo, o fim do princípio do meu encontro com Deus. Vício, o meu amor pelo brilho instantâneo dos outros.

domingo, setembro 04, 2005

O mentiroso


Havia muito tempo que carregava aquele grito às costas. «És um grande mentiroso». Todos os dias, aquela voz estrídula a exclamar-lhe por dentro mentiroso mentiroso mentiroso mentiroso. Sempre lhe apeteceu contar aos outros pequenas histórias, ligeiros enredos que fossem avessos à monotonia resultante dos dias. Queria desviar aqueles olhos tristonhos do chão e pô-los ao nível dos seus. Queria, no fundo, alegrar as pessoas. Todas as historietas que contava tinham um fundo de verdade e eram muito claramente influenciadas pelas coisas que via e pelas coisas que sentia. Num impulso, derramava as personagens, os eventos e os sítios. Aquilo fazia-o fervilhar. A sua única preocupação era descobrir até onde o levava a sua imaginação. Não pensava em engano ou desilusões. Não pensava na mágoa que os outros pudessem sentir quando, finalmente, tivesse encontrado o fundo ao saco imaginativo e levantasse a cortina, revelando então a verdade. Eram pedaços da sua criatividade e gostava de os expor às pessoas amigas. Como quem encosta às paredes duma galeria os seus quadros ou suas fotografias. Queria ser um incitador ao devaneio imaginário, um mostruário de novos mundos. Para ele, cada história começada era uma janela aberta à rua, fora do quarto bafiento da realidade. Ele dizia que aquelas narrativas fantasiosas acalmavam a sua frustração e lhe davam esperança. Era isso, ele queria ter esperança. «Um dia entro numa destas jornadas e nunca mais regresso.» Adeus hipocrisia, adeus, crueldade, adeus injustiça, adeus impossibilidade. Por isso, inventava pequenos relatos, que atirava aos outros com todo o ardor, acreditando que, com isso, as pessoas iriam sorrir e deixar de lado as agruras da actividade moderna. Era mesmo isso. Ansiava libertar toda aquela fuligem e trivialidade que exilava das pessoas com quem contactava. Sempre os mesmos problemas, sussurrados nas mesmas frases, às mesmas alturas do dia.
Agora gritavam com ele, «mentiroso, mentiroso, falso, falso, falso». Mas o calor desabou sobre a cidade quando ainda todos o acusavam. Esse estrondo fez dispersar as vozes acusatórias. Cada um seguiu o seu trajecto, cada um fechou o seu grito e prosseguiu, como se, de repente, houvesse uma mão que lhes desligasse um botão no corpo. «O que é que se passa?» O homem, a quem acusavam de ser mentiroso, queria que o olhassem nos olhos e vissem o seu espírito incrédulo. Queria correr atrás das pessoas e bater-lhes nos ombros, e depois mostrar-lhes o seu rosto cheio de verdade, a sua verdade. Mas as vozes acusativas desapareceram entre o polvilho da rotina diária. O homem da mentira ia andando de um lado para o outro. Incerto, com gestos ainda difusos, entrava no período do silêncio. A noite abriu as suas asas e escureceu todas as palavras e todos os pensamentos se tornaram certezas. Mas nenhum deles deixou de soar a mentira.