quarta-feira, outubro 12, 2005

Breve desunião do tempo


A partir de agora o tempo multiplica-se. Corre depressa, abranda, saltita, sobe as árvores nuas, pendura-se nos seus galhos, balança. Cai. A partir desta noite, vejo todos os ponteiros de todos os relógios mais longos que as suas sombras. São duas e um quarto, são quatro e meia, é uma hora, é uma e trinta e cinco. É meia-noite. O tempo que traz lá dentro uma revolução, uma revolta, uma transmutação. Fixado à parede de cal, o som metálico dos ponteiros é enrolado numa sombra que diz negro e diz dano e diz angústia. Vejo estas horas desiguais a serem uma lágrima ao fundo do corredor. Percorro-o, introduzo-me de manso nessas águas turvas, tento espreitar os buracos que não consigo alcançar com as mãos, silencio os meus passos e espero uma resposta, uma voz mortiça ao fundo, que do negrume me diga esperança ou suspire confiança ou murmure luz luz luz. Mas eu não vejo mais que pintas de alcatrão grosso. Eu não vislumbro nenhum rosto e muito menos escuto vozes ou suspiros ou murmúrios. Sinto a breve desunião do tempo. Sinto, vindo de cima e dos lados, numa explosão uníssona e crepitante, a tômbola das horas. Não tenho esperança, não tenho fé, não tenho, ao perto, a luz. Como se visse, a partir de agora, as horas do fim. Nítidas, nítidas.

sexta-feira, outubro 07, 2005

O homem da gravata


«Tenho 45 anos e nunca pus uma gravata». Ramiro Gonçalves levantou a voz, no meio de uma conversa entre colegas de trabalho. «Nunca pus uma gravata e repudio a coisa.» Sem que ninguém lhe ligasse, Ramiro Gonçalves resolveu adoptar um tom algo sibilante ao que dizia, aguardando a merecida atenção. Como os outros continuavam a rir, de copo na mão, e a discutirem os assuntos mais insípidos, Ramiro pôs-se todo num grito. «Usar gravata é um acto ridículo que não traz nenhuma utilidade ou benefício à vida das pessoas. A gravata é um objecto supérfluo.» Assim que deixou a voz abater-se largou da boca um sorriso de triunfo. Todos os homens e todas as mulheres pararam de beber e interromperam as respectivas conversações. Foram 4 ou 5 segundos em que o silêncio se sobrepôs à algazarra. Uma paz feita de cimento veio cair sobre todos os sons dentro de cada um dos movimentos. Ramiro Gonçalves, sem copo na mão e com o fôlego já recuperado, destilou nesse sossego instantâneo o seu olhar científico. Preparava nova intervenção. Nesses 4 segundos não tirou as mãos dos bolsos e fez questão de manter sólido aquele sorriso vitorioso. Enquanto todos processavam as palavras estridentes, que ainda flutuavam à superfície das bebidas, Ramiro, o homem que nunca usou gravata, reunia dentro dele uma força distinta. Esperou que chegasse o primeiro movimento, esperou que a onda de silêncio se dissipasse, esperou, com o sorriso sempre bem assente na cara, que alguém debuxasse a mais pequena reacção ao que tinha acabado de dizer. Os seus olhos, em dois segundos, desbravaram a sala cheia de mãos e cheia de copos e de rostos atordoados. Nessa profusão de vidro e líquido, reparou que haviam muitas gravatas. Então, antes que uma delas se pusesse a bailar e a puxar a voz ao dono encarniçou-se da força excepcional que explodia dentro dele e disse «A gravata é dona dos homens que a usam. Cada homem com gravata é um fantoche e gosta de ser fantoche. De manhã, enquanto a põem em frente ao espelho, dando voltas e nós e mais voltas, está, de facto, a perder tempo. Afinal, para que serve uma gravata? Embalado, Ramiro, de camisa branca franqueada, tornava evidentes as veias do seu pescoço. «Afinal, caros bonifrates, de que vos serve esse pedaço de tecido aí pendurado ao pescoço?
Aquele homem eriçado, um recém-nascido inimigo das gravatas, pendurou o discurso e estacou-se à porta do bar. Abriu-a e saiu. Atrás de si uma comoção que aumentava. Atrás dos seus ombros, a esbater na montra com a impetuosidade de uma tempestade, o tambor da multidão, as vozes da ira, o vidro a estremecer, a ondular-se em múltiplos movimentos.
O senhor Gonçalves sentou-se no lancil. Enquanto os automóveis passavam e paravam diante do círculo vermelho, enquanto a coruja no jardim em frente piava e esse som se diluía no amansar da cidade, enquanto as gravatas, dentro do bar, voltavam ao frenesim dos copos e das conversas da largura de um canto escuro, ele pensava: «de um momento para o outro tudo isto se consumirá. Porque hoje, depois de muitas possibilidades, não te encontrei. Agora, não tenho mais nada a dizer. Devia ir dar uma volta, sei lá, apanhar o ar das pessoas na noite, não sei, sentar-me no banco de jardim, estender as pernas, ver os estrangeiros de mochila às costas e os corpos feitos de uma asneira que não compreendem. Pois devia. A qualquer momento tudo isto ruirá. Não há nada mais a contar. Sigo como as velas ao vento. Sou eu mesmo o vento. Sou a poeira que vai no vento e as pessoas não notam, não vêem. Não querem ver»
Amanhecer, entardecer, anoitecer. E depois? Há alguma coisa que seja proveitosa quando ninguém está a olhar? Como um esconderijo. Como a cortina que oscila e já não é Verão. Mas parece.