quinta-feira, agosto 18, 2005

Estilhaços


Quando subia a rua sentiu as janelas tombarem sobre a calçada íngreme. Dentro das janelas havia vozes. Dentro das janelas viam-se gestos e vozes langorosas que flamejavam de indiferença, de miserabilismo. Viu os trilhos de metal que carregam os eléctricos. Ao cimo da rua gente passava e abafava os seus pensamentos. Cada passo muito vagaroso, cada lembrança a luzir-lhe por dentro, a pressagiar-lhe, de repente, tudo o que queria dizer. No eco dos seus pés, que embatiam no chão em lentidão extrema, quase inertes, assistiu-lhe, porventura, um tal fulgor no espírito que lhe palpitaram do cimo da língua todas as palavras que deviam ser ditas.
E disse: talvez o mar sejam as pessoas, talvez a voz que ouço do mar sejam as pessoas todas juntas, todas tristes que gritam, talvez o mar inteiro seja um grito e talvez esse grito só seja escutado em raros momentos, quando debruçamos a nossa alma sobre ele.
Talvez tudo seja feito com ferro, com vidro e com madeira. Talvez tudo seja feito de ferro e de vidro. E de estilhaços.

terça-feira, agosto 16, 2005

A generosidade da Natureza


Faço intenções que isto resulte. Deposito nas palavras que agora escrevo uma ventania, um repentino movimento a clamar alvoroço e a pedir vozes, a pedir diálogos, a resgatar gente, que venham até cá, que se lembrem de tocar à porta, é castanha, de madeira, que venham, são bem-vindos. Contam-se histórias, combinam-se discussões sobre o mundo e sobre os que nele depositam as vulgaridades amontoadas em dias seguidos à espera.
Ontem a maledicência frontal sobre um rapaz. Ontem alguém lhe disse que a natureza não tinha sido generosa com ele. Um ribombar lá dentro. Aquelas palavras sem dó, aquelas palavras como um baloiço a ir e a vir à conta dos empurrões da memória, aquela frase o dia inteiro a pairar como um guarda-chuva em dia de tempestade. Uma rapariga meio tonta, sem graça nenhuma, sem nenhum motivo evidente para ser tida em conta disse-lhe aquilo, sem ele estar à espera. É o pior. Quando se trocam palavras e formam conversas simples, os olhos nos olhos ou nos detalhes do outro, quando a passagem breve dentro do café é causa de distracção e as coisas fora do sítio deslocam-se à vista desarmada, quando ele sentado, quando ela a ouvi-lo dizer coisas eloquentes, quando ela retém o que ia a dizer porque lhe apetece sorver mais um pouco do café com leite, quando ele, cândido, lhe confessa a desilusão sobre as mulheres, sobre a vida que leva, quando por fim põe pausa na língua e espera um consolo, uma concordância em feitio gestual, ela, por impulso, por maldade, por incompreensão do silêncio que lhe vê no rosto diz-lhe a natureza também não foi lá muito generosa contigo. Eles não são amantes, eles não se encontram muitas vezes, eles nem sequer têm gostos em comum. Aquela frase, a ele, corrompe-lhe o interior. É um ser estraçalhado que agora se levanta e acerta conta com o empregado. Ela quando se levanta e faz o mesmo já não se lembra do que disse, porque entretanto, passaram muitas vozes e passou muito tempo a enviar mensagens do telefone e lá fora chovia. Ele, por estar entregue às fraquezas de uma personalidade extraviada pensa muitas vezes ódio, pensa muitas vezes com muita força pregar-lhe um estalo ou levá-la para um descampado e aí, na mudez da escuridão, mostrar-lhe que, afinal, a bondade da natureza tinha sido bem maior do que ela pensava. E demonstrar-lhe que, em certas ocasiões, é do agrado dos deuses ser-se discreto.
Os pensamentos são facas aguçadas. As imagens de violência misturam-se naquela vaga de chuva e dos céus ele não vislumbra ousadia. Fica a olhar um cinzento amolecido debaixo do toldo de plástico a dizer Café da Praça em letras vermelhas. Ela ainda dentro do rebuliço das bandejas prateadas conversa com alguém que encontrou. Não se lembra. Nele, o ódio. Ele, já húmido daquele céu sem piedade, quer mal aos outros, quer que a vida dela seja um poço negro, quer ficar sozinho, quer recolher os gritos de que a cidade é feita e arremessá-los aos rostos dos felizes como ácido. Ela, entretanto, sai, e olha para os lados em busca dele, a chuva pinga abundantemente da borda do toldo branco que diz Café da Praça em letras vermelhas, ela tropeça em alguém que entra empurrado pela chuva. No banco de trás de um táxi, uma angústia muito grande a afastar-se.