sábado, novembro 13, 2004

Ondas de luz


Nestes caracóis existe luz. São negros, tal como a luz também é negra quando é pura. Dentro deste enleado de luz negra existem muitas ideias e muita sensibilidade e muita criatividade. Ontem, no momento exacto em que a noite se pôs, eu quis deixar lá os meus dedos. Vê-los desaparecer no interior dessa luz, estreitá-los até que deixassem de ser meus. A noite avançava, álgida, os meus dedos e as minhas mãos sempre inquietos, tentavam desprender-se do meu corpo, queriam fundear-se naquela negrura reluzente. Os meus dedos desejavam ser as ondas compactas e vigorosas, escuras, cintilantes, enigmáticas, que os meus olhos viam e não acreditavam, que o meu olfacto sentia mas não podia acreditar.
Quando a noite cresceu e se fizeram nela instantes de caos, por momentos, que eu julgava terem sido dias, deixei de ver essas ondulações. Buscava na rua, observava as janelas das casas, vigiava o céu e a película de gelo que o segurava. Não as sentia próximas. A luz longe de mim, a pureza do negro muito longe de mim. Havia, naquela altura, muita gente que dizia coisas, havia o meu rosto a olhar para os meus dedos; eu era um labirinto de pensamentos.
A noite como um regaço morno a atender as minhas demandas, os meus desejos. Eu precisava que uma massa enorme de ondas negras me encontrasse. Ao meu lado, esta escultura de geometria circular. Ao meu lado, infinitas linhas negras de luminosidade como destino natural dos dedos de uma mão fria.

terça-feira, novembro 09, 2004

Uma forma de loucura


E ele, quando acabou de descer os degraus e assomar à rua, pensou: o início das coisas. Não me habituo ao que te quero contar, às cartas inacabadas, folhas em cima da mesa ao relento, propícia à aragem que passa, e às pausas a observar o que dizes, o que se retira desses lábios em formato mais pequeno e mais perfeito que o regular, o que dizes a vermos o mar. Abriu o guarda-chuva, deu dois passos e deteve os olhos na quadrícula riscada no passeio. Pensou: esplanada, tarde quente, tarde a aquecer, mentirosa, tarde com mesas à volta das pessoas e não o contrário, as tardes de quando se intenta a caminhada em todas as direcções possíveis. Depois recomeçou a planície dos passos seguros no cimento do passeio. Na brecha que a pele mostrava em minúsculos movimentos da sua mão, sentia o letargo da chuva que caía, agora intensa, no topo do guarda-chuva. Desviou-o um pouco. Olhou o céu e as folhas, entre os seus olhos e esse céu, e voltou a pensar: o princípio da consciência como moeda de troca, ver passar a tarde, limpar os olhos, ver as pessoas desfocadas, a timidez e o desconcerto da cegueira breve, a apática maneira de vestir, a maneira de compor os membros ao longo da caminhada, do recomeço da noite, do dia, de nós.
Ao dobrar a esquina, desvia-se e vê: gancho de plástico castanho, cabelos grisalhos emaranhados, pertinazes, intolerantes, a sua palestra surda proposta em segredo aos amantes do Mal. Continua a caminhar, a sua marcha como um carimbo grosso e o cimento escuro da água como um rolo de papel, desdobrado imaculadamente ao infinito da rua. Pensa e deseja, pensa sem querer desejar: tarde quente, tarde antes do Verão, antes de eu chegar a tempo de palmilhar uma bolsa feita de remendos e encontrar lá dentro a minha quietude vestida de negro. Ele, com a mão a segurar a força do céu, prossegue no seu caminho, entre montras e outras pessoas que também seguram com algum afinco a vara do guarda-chuva. De vez em quando, o vento e a chuva desviam as pessoas. O vento move a chuva de encontro ao vidro das montras. Ele detém-se a ver as gotas que escorrem encarneiradas no vidro. Defronte do seu vulto algo fosco observa outros humanos e a sua forma de gritar.
O homem entra no café, sem pressa. Sacode o guarda-chuva e coloca-o nas costas de uma cadeira. O homem, ainda com a gabardina vestida, senta-se. Não se sacode, não baixa os olhos, não se esconde. Vê: os dedos de alguém a bater ritmadamente em cima de uma mesa, uma chávena de café utilizada que balança e estremece, a colher desmaiada dentro dela, ciliciando os ouvidos de quem está perto, as mãos de outra pessoa que manuseiam um livro acabado de comprar, o corpo magro do empregado, segurando uma travessa de metal, e as luzes algo trémulas, em cima dele, viscosas indecisas, entre a alvura de um relâmpago e o acervo ténue de uma vela. Então, o homem salta para cima da cadeira como um lobo para cima de uma carcaça, põe as mãos em forma de concha a tapar a boca, entreabre-as e diz:
«Tenho os pés gelados. Tenho de adormecer e não quero. Tenho os dedos dos pés dormentes do frio, de estarem inertes, do frio a ser muito escuro. Quero deitar a cabeça na almofada e lembrar-me que dias assim são poucos. Quero adormecer sem ser de noite, sem ser de dia. O pardo da irracionalidade. Um quarto de hora até aquecer a alma com palavras jorradas aqui. Esta sala embrutecida como uma canção poeirenta, ver além da esperança, ver como sair deste sítio, ver beijos, ver sonhos, ver-me dentro de um sonho a beijar alguém. O que é tocar a tua pele? O que são beijos quando pende do céu um gelo antigo? Eu aqui, assim, sem nada que me encante, enfraqueço. E isso pode ser o começo.»
O emudecimento que se pôs era artificial. Havia pernas que mexiam, havia o resfolegar dos tecidos de encontro a outros tecidos, havia o vapor muito lento da máquina de café, haviam rostos parados, numa delonga quase cinematográfica. Cada rosto emboscado, à espera do recomeço ou do fim. O homem despe a gabardina. Pingos de água. Uma voz de meio-tom no fundo da sala que não chega nascer porque, entretanto, ele dá mais um salto e assenta os dois pés em cima da mesa. Argolas de toada rouca atingem esses rostos estagnados. O homem pega num livro e diz o nome do homem que está no livro: Paulo José Miranda. As pernas do homem afastam-se e flectem ligeiramente. O homem solta da sua boca as letras pretas do nome do livro: Vício. Há quem tussa e se encolha atrás de alguém. Há quem queira perguntar muitas coisas, há quem pense “desgraça”, há quem pense “morte”, há pensamentos que dizem “chega”.
Então as gentes separadas pelo medo e pela incredulidade vêem o homem encher o peito, olham as veias do seu pescoço a insuflarem e sentem nos seus rostos o hálito de uma voz agonizante a sair daquele tronco de carne afogueado. Diz: «Mas é precisamente isto que a leitura encerra em si mesma: a longinquidade do quotidiano insuportável. Não do mundo, apenas dos dias. Para carregar um dia, que pesa mais do que o mundo inteiro, mais do que séculos de história, é preciso ler. É uma perdição, sem dúvida, mas não há outro modo de não nos perdermos. E terrível é a vida quando, em completo desencontro com os dias, também não conseguimos ler; ou escrever, que é uma outra forma de ler, mais privada, mais egoísta, pois não há partilha ou apenas uma ilusão de partilha.»