terça-feira, novembro 09, 2004

Uma forma de loucura


E ele, quando acabou de descer os degraus e assomar à rua, pensou: o início das coisas. Não me habituo ao que te quero contar, às cartas inacabadas, folhas em cima da mesa ao relento, propícia à aragem que passa, e às pausas a observar o que dizes, o que se retira desses lábios em formato mais pequeno e mais perfeito que o regular, o que dizes a vermos o mar. Abriu o guarda-chuva, deu dois passos e deteve os olhos na quadrícula riscada no passeio. Pensou: esplanada, tarde quente, tarde a aquecer, mentirosa, tarde com mesas à volta das pessoas e não o contrário, as tardes de quando se intenta a caminhada em todas as direcções possíveis. Depois recomeçou a planície dos passos seguros no cimento do passeio. Na brecha que a pele mostrava em minúsculos movimentos da sua mão, sentia o letargo da chuva que caía, agora intensa, no topo do guarda-chuva. Desviou-o um pouco. Olhou o céu e as folhas, entre os seus olhos e esse céu, e voltou a pensar: o princípio da consciência como moeda de troca, ver passar a tarde, limpar os olhos, ver as pessoas desfocadas, a timidez e o desconcerto da cegueira breve, a apática maneira de vestir, a maneira de compor os membros ao longo da caminhada, do recomeço da noite, do dia, de nós.
Ao dobrar a esquina, desvia-se e vê: gancho de plástico castanho, cabelos grisalhos emaranhados, pertinazes, intolerantes, a sua palestra surda proposta em segredo aos amantes do Mal. Continua a caminhar, a sua marcha como um carimbo grosso e o cimento escuro da água como um rolo de papel, desdobrado imaculadamente ao infinito da rua. Pensa e deseja, pensa sem querer desejar: tarde quente, tarde antes do Verão, antes de eu chegar a tempo de palmilhar uma bolsa feita de remendos e encontrar lá dentro a minha quietude vestida de negro. Ele, com a mão a segurar a força do céu, prossegue no seu caminho, entre montras e outras pessoas que também seguram com algum afinco a vara do guarda-chuva. De vez em quando, o vento e a chuva desviam as pessoas. O vento move a chuva de encontro ao vidro das montras. Ele detém-se a ver as gotas que escorrem encarneiradas no vidro. Defronte do seu vulto algo fosco observa outros humanos e a sua forma de gritar.
O homem entra no café, sem pressa. Sacode o guarda-chuva e coloca-o nas costas de uma cadeira. O homem, ainda com a gabardina vestida, senta-se. Não se sacode, não baixa os olhos, não se esconde. Vê: os dedos de alguém a bater ritmadamente em cima de uma mesa, uma chávena de café utilizada que balança e estremece, a colher desmaiada dentro dela, ciliciando os ouvidos de quem está perto, as mãos de outra pessoa que manuseiam um livro acabado de comprar, o corpo magro do empregado, segurando uma travessa de metal, e as luzes algo trémulas, em cima dele, viscosas indecisas, entre a alvura de um relâmpago e o acervo ténue de uma vela. Então, o homem salta para cima da cadeira como um lobo para cima de uma carcaça, põe as mãos em forma de concha a tapar a boca, entreabre-as e diz:
«Tenho os pés gelados. Tenho de adormecer e não quero. Tenho os dedos dos pés dormentes do frio, de estarem inertes, do frio a ser muito escuro. Quero deitar a cabeça na almofada e lembrar-me que dias assim são poucos. Quero adormecer sem ser de noite, sem ser de dia. O pardo da irracionalidade. Um quarto de hora até aquecer a alma com palavras jorradas aqui. Esta sala embrutecida como uma canção poeirenta, ver além da esperança, ver como sair deste sítio, ver beijos, ver sonhos, ver-me dentro de um sonho a beijar alguém. O que é tocar a tua pele? O que são beijos quando pende do céu um gelo antigo? Eu aqui, assim, sem nada que me encante, enfraqueço. E isso pode ser o começo.»
O emudecimento que se pôs era artificial. Havia pernas que mexiam, havia o resfolegar dos tecidos de encontro a outros tecidos, havia o vapor muito lento da máquina de café, haviam rostos parados, numa delonga quase cinematográfica. Cada rosto emboscado, à espera do recomeço ou do fim. O homem despe a gabardina. Pingos de água. Uma voz de meio-tom no fundo da sala que não chega nascer porque, entretanto, ele dá mais um salto e assenta os dois pés em cima da mesa. Argolas de toada rouca atingem esses rostos estagnados. O homem pega num livro e diz o nome do homem que está no livro: Paulo José Miranda. As pernas do homem afastam-se e flectem ligeiramente. O homem solta da sua boca as letras pretas do nome do livro: Vício. Há quem tussa e se encolha atrás de alguém. Há quem queira perguntar muitas coisas, há quem pense “desgraça”, há quem pense “morte”, há pensamentos que dizem “chega”.
Então as gentes separadas pelo medo e pela incredulidade vêem o homem encher o peito, olham as veias do seu pescoço a insuflarem e sentem nos seus rostos o hálito de uma voz agonizante a sair daquele tronco de carne afogueado. Diz: «Mas é precisamente isto que a leitura encerra em si mesma: a longinquidade do quotidiano insuportável. Não do mundo, apenas dos dias. Para carregar um dia, que pesa mais do que o mundo inteiro, mais do que séculos de história, é preciso ler. É uma perdição, sem dúvida, mas não há outro modo de não nos perdermos. E terrível é a vida quando, em completo desencontro com os dias, também não conseguimos ler; ou escrever, que é uma outra forma de ler, mais privada, mais egoísta, pois não há partilha ou apenas uma ilusão de partilha.»