sábado, outubro 23, 2004

Preciosidades


Quando a ponta do meu dedo indicador percorre a fileira de discos e escolhe um, o puxa à luz e o põe no leitor de CDs. Nestas ocasiões, em que as sextas-feiras descarregam a volatilidade da semana em jeito voraz, sabe muito bem pegar num disco destes e deixar a sua entoação pendurada no ar sobrante da casa. É muito mais que um acto isolado e rotineiro. Quando a voz volúvel de Mark Kozelek não se intimida, não segue regras, não aceita nenhum impedimento e segue quase febril, ao acaso dos meus gestos e da minha satisfação táctil. Quando um disco destes se ajusta perfeitamente ao termo da semana e inaugura outras passagens. Fazer deste instante uma festa. Repetir e misturar em violência as letras e a música, enquanto os segundos passam, enquanto as horas passam. Depois, algo aturdido pelo som hipnótico do piano, renovar a melodia muitas vezes nos minutos seguintes, deixá-la esmaecer, arremessá-la contra o silêncio e fazer dessa colisão uma raridade. Guardá-la dentro das mãos, e logo a seguir, sem fazer caso do meu próprio juízo, anunciar oficialmente a vinda do fim-de-semana.

«Tell me and take your time
Set free this soul of mine
Freeze frame this sedate moment
Lie me in your quiet ground

I understand your
Tired eyes for these
Tired homes and tired trees
I see the pain in those
Brown eyes
Fires burn in Autumm skies»

(Brown eyes, Red House Painters)

quinta-feira, outubro 21, 2004

Respirar fundo


Antecipar-me. Abrir a porta de casa, receber a frescura inaugural da manhã, acondicionar nos ombros a penumbra, o início do dia. O movimento oblíquo e ainda narcotizado da cidade, das pessoas, dos automóveis, vermelho, verde, percorrer a avenida da liberdade, ondear o marquês, subir as amoreiras. Recolher nos olhos, ainda apertados de sono, a proclamação de um dia chuvoso. Deslizar na A5, palmilhar a verdura de monsanto, observar o sono dentro dos carros que me ultrapassam, inventar na minha pele e nos meus gestos trôpegos a actividade. Tirar uma mão do volante, esfregar o rosto, oito menos um quarto em números alaranjados, descer a auto-estrada absorto na nebulosidade pensativa das tarefas do dia, reduzir a velocidade, curvar, perder a vista ao asfalto, fender o vale do jamor, estacionar o carro e pegar num segundo, em vinte segundos e oferecer-lhes a ondulação das árvores, o seu fôlego no regresso do encarvoado da madrugada.
Fintar o dia, amplificá-lo, ter toda a esperança num bolso do casaco e mostrá-la a quem passa, dizer bom dia, entrar no balneário, despir o casaco, esvaziar os bolsos. Calçar os chinelos, percorrer os corredores em direcção à piscina, oito horas, um arrepio, o meu reflexo no espelho que perfaz uma parede inteira. A piscina. As luzes artificiais amarrotadas na superfície da água. Verter os meus passos à borda de água. Mexer nela, onomatopeias subtis de prazer. Mergulho, mergulho, deixo-me resvalar até ao fundo, a linguagem voluptuosa da água sobre mim, um corpo sobre o meu corpo, o quase silêncio, a fuga aparatosa da realidade, da sua consistência, o líquido cerúleo num bailado eterno. Vir à tona, respirar fundo, mergulhar. E a serenidade a fortalecer-me todo por dentro, como essas coisas doces que me dizes ao ouvido. Respirar fundo, mergulhar.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Portas que se abrem


Não foram duas vezes. Talvez tenham sido mais que três, até. Não sei. Mas é com agrado que noto uma certa empatia entre o meu pensar e o que a Catarina escreve, acertadamente, no seu http://catarinaemfuga.blogspot.com. Acreditem, não a conheço pessoalmente. Acreditem, ninguém me pressionou a escrever estes aplausos. Portanto, o que me desviou dos comentários ao desarranjo das coisas e me impulsionou até esta evidente e gratuita oferenda de publicidade ao blog da Catarina? Uns dirão: «David, estás em falta com alguém e decidiste realizar uma boa acção para compensar actos indevidos». Outros, ainda num tom cordial mas já com pensamentos desviantes, opinarão: «É óbvio que o rapaz arquitecta o suicídio do seu próprio blog e quer encontrar outro que o possa perpetuar e melhorar em ideias e pensamentos». Os mais insolentes, quem sabe em estado exageradamente meditabundo, calçarão os seus melhores sapatos e sairão à rua, de megafone em punho, e gritarão: «Atenção, atenção! Há um louco na net, que perdeu a cabeça e, descaradamente, se pôs a publicitar um blog de outrem. Muito cuidado com ele.»
A verdade: para mim, será sempre empolgante e motivo de regozijo receber a sensibilidade dos outros. Por isso, obrigado Catarina, obrigado Nuno
http://www.aformadojazz.blogspot.com, obrigado Vânia http://palco-da-vida.blogspot.com, e os outros, cuja criatividade e vontade de partilha me inspiram aos melhores actos que a vida pode conter.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Músicas #02


E mais isto. São as sonoridades correntes cá do prédio, que desatam a espalhar o entusiasmo e a fabricar partículas de boa disposição. Os neutrinos da alma.

Músicas #01


Actualmente, cá em casa, escuta-se isto.

O jantar


Estas são as provas materiais que demonstram, sem margem para erros, a minha perdição. Digo mais: estas fotografias provam a minha vontade em continuar no cerne desta condição de maldito. A minha alma, quando se apercebe das maledicências que solto, aqui e ali, sem pudor nenhum, arrepende-se. Eu não. Eu sigo em frente, em busca de tais tesouros providenciais que ajudem à minha insanidade. Como verificas, há algum torpor e obscuridade nas evidências. Agora, que estás no conforto de um sofá ou de uma cadeira, e lês estas palavras, parece evidente que houve uma certa facilidade na obtenção das mesmas. Pois parece, mas não foi, caro amigo.
Naquele Sábado as horas passavam. Enquanto entrevia o atraso das divas fui dando achego ao preparo do jantar. Em lume muito brando mexia a colher de pau e pensava nestes meses todos passados ao abrigo da minha voz e de pouco mais. O tacho com arroz fumegava. Sem pressa nenhuma, assistia à subida do vapor que se perdia no abismo da chaminé. Pensava. Dava à colher e pensava. Lembrava-me de todos os Sábados e todas as sextas de todos os meses que sucederam e em que apenas esperava dois ou três copos de vinho, umas frases benditas e o arrojar do corpo à cama, de consciência limpa e devoluta. Assim eram as memórias do Inverno, do rugir da solidão, do hábito à solidão e do efeito viciante de bem-estar quando nela me banho. Neste Sábado, enquanto as meninas confundiam as nove com as nove e meia, nem me dei conta da invasão pacífica prestes a acontecer, nem da falta que momentos como este me fazem. No deserto e nos costumes de rapaz despovoado há mais a acontecer do que se imagina. Pensar, não pensar, deixar de pensar, deixar de ouvir, o silêncio, uma multidão de vozes, por fim, a paz. Depois de muito tempo a paz. Deixar de desejar, deixar de sonhar, deixar de fora a esperança. Deixar de ter medo. Na lentidão da noite e nesta viagem de pensamentos incertos, o jantar predispôs-se, mesmo à medida do toque da campainha.
Uma mulher, por mais vulgar que seja, encerra sempre um mistério. Exponencialmente, mulheres encantadoras como a Sara, a Cris e a Cláudia (que aparecem na fotografia) encerram os mais gulosos mistérios. Desde o primeiro abraço, enquanto se livram do casaco e do frio desajeitado de Maio, ao beijo que o meu rosto nunca se cansa de repetir, mulheres assim são os maiores acenos de bonança que um homem pode ter. De nada serve observar, no reflexo da janela, a minha burlesca figura, segurando uma colher de pau e pensar que ainda estou sozinho, como nas outras noites da semana. Elas tomam conta do espaço, do ar meio frouxo desse espaço e convertem-no num pequeno oásis. Se não for pelos gestos, se não for pela graciosidade, é, certamente, pelo tom de voz ou pela maneira enigmática – lá está o factor mistério outra vez – com que argumentam a sua presença. Tão bem quanto eu sabes ao que me refiro.
Entretanto, posta a mesa e servido o vinho, a naturalidade do evento começa a arrulhar os sentidos. O vermelho do vinho e o vermelho negro do sangue quente. É conhecida a influência do néctar de Baco nos corpos mortais. Normalmente, é a luz desbotada, são frases sem nexo e sem verdade, são vozes transformadas em gritos e são silêncios a amortecerem a conversa. Mas estas presenças femininas não pertencem ao comum das gentes. Se eu te disse, há pouco «encantadoras» devia ter escrito, a vermelho e em letras grandes, «mulheres inebriantes, encantadoras e inteligentes». Da singularidade que estes encontros produzem conservo as frases agrilhoadas como serpentinas no infinito da sombra, retenho os momentos de humor que apagam da pele todos os resquícios de aflição, surgem, em boa verdade, as partículas mais elementares de vida feliz.
E este céu que nunca mais se ajeita.

domingo, outubro 10, 2004

Diários


De vez em quando, algo nos cerca, regateando subtilmente a nossa atenção. Às vezes, mesmo quando parecemos envenenados e absortos na estridente vulgaridade deste nosso quotidiano, há algo que nos cumprimenta de forma afável, se apresenta e nos conquista para sempre. Esses momentos, esses impactos vigorosos que ficam eternamente registados na nossa vida, na nossa alma, e influenciam a nossa forma de ver o mundo, felizmente, se prestarmos atenção, ainda não são tão raros assim. É a música, é a pintura, é uma conversa, é um livro, são muitos livros, é um beijo, são muitos beijos, é uma boa refeição, um bom vinho, é uma fracção do silêncio. É um filme, como este http://www.motorcyclediariesmovie.com. E são todas as demonstrações de humanidade que habitam nele.

quarta-feira, outubro 06, 2004

A sombra do vento



Por favor, leiam este livro.

segunda-feira, outubro 04, 2004

À solta


Como as marés, venho desaguar às tardes de Maio sem noção do tempo. Caminho e destruo-me. Às vezes, acompanho os meus pés descalços na areia com pensamentos embebidos na brisa da tarde.
Aqui, nesta terra demorada, os corpos das mulheres são lembranças. Nesta luminosidade, resta em cada corpo martirizado, a ofensa do abandono. Lembro-me.

A carta


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural, e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem-haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saia da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e vazios, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros murmuravam. Bradaram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.

sexta-feira, outubro 01, 2004

E se não houver nada?


O que há a fazer quando não existe, realmente, nada para contar? Como sobrevivem as cartas, os encontros nos cafés, as reuniões entre amigos à mesa de restaurantes, os passeios de mãos dadas que roçam o viço dos jardins? Vivem de quê, os diálogos e os monólogos? Pergunto eu, como se consegue então suportar a ausência absoluta, firme, cientificamente comprovada, de factos novos na vida das pessoas? Como é possível tal coisa? Enquanto caminhava rumo ao meu covil, pensei numa escrita mais ou menos original, a ser especialmente elaborada como resposta ao teu último contacto. Afinal, eu é que me desleixei, eu é que olhei para o lado, eu é que mandriei, nesta história de regularidade escriturária. Vi o meu rosto transgressor em cada reflexo. Confesso a tormenta. Aconteceu-me até, vê lá tu, permanecer largos fragmentos do dia a pensar na remota possibilidade de, um dia – o mais inesperado de todos – assistir ao colapso estrondoso da nossa amizade. Às vezes dou por mim a imaginar que as relações têm garantia para uma vida, pelo menos para uma vida. E mesmo se, por instantes, somos enrolados no engodo do Amor ou da Felicidade ou das milhentas tarefas que a Vida nos proporciona e a deixamos à deriva, a Amizade, pensamos sempre que tem automatismos próprios e que não precisa de um retoque ocasional nem de constante atenção. Eu sei que nem a distância geográfica pode justificar a queda nesta esponjosa preguiça. Afinal gosto ou não gosto? Temos ou não temos saudades das pessoas? Não basta sabermos que está tudo bem, não é suficiente sentirmo-nos confiantes e «seguros» que aquilo ali à nossa frente é uma relação protegida por laços de ferro e que nunca irá ser destruída. E, no entanto, quantas vezes catapultamos a mente até à planície acessível do «está tudo bem, ela está bem, amanhã escrevo-lhe, ela deve andar ocupada com as suas coisas»? Mas o nosso caso é diferente, ripostas tu. Nós temos a certeza, nós seremos sempre amigos, dizes, digo, dizem.
Regresso às indagações, para que a linha mestra desta divagação não se diminua: como sobrevivem as gentes quando não acontece nada? O que é uma vida sem notícias, o que são os dias sem a algazarra e a gritaria de uma suculenta novidade, como pode fruir com a mesma sobriedade o espírito do Homem quando, verdadeiramente, nada se passa que mereça uma mensagem escrita, quanto mais uma carta? Se calhar, perante a vivência na capital cultural europeia, vai parecer-te extravagante este desassossego de aldeão. Se calhar, traduzes esta carta a um francês teu amigo ou teu amante (ou o que seja) e os dois vão até à varanda atirar à rua duas, três ou até mais gargalhadas. Assim, como dois alienados, tombando o corpo sobre o varandim, rindo, gozando, troçando destas palavras, de mim. Não precisas dizer que não, que estou parvo por te afrentar com estas dúvidas, estas fantasias. Não são dúvidas. São muito menos fantasias, que pensas tu?
Onde é que eu ia? Sim, tentava encontrar uma hipótese que desse conta das questões acima escritas. Não dizes nada? Observas-me nesse tom apalermado, sem saberes o que fazer, que gestos proferir. Até mete impressão, até metes impressão. A tua letargia, o teu riso que agora se transfigura e aparece como vergão, subtilmente, no meio da testa. Impressionante. Pois é, não vejo agora esses dentes, já não noto a mesma desenvoltura, a mesma firmeza e postura de brincadeira. Não me distraias, ouviste? Deixa-me terminar este escrito. Deixa de tagarelar ao meu ouvido, sai de dentro da minha cabeça, de dentro do meu sangue. Comporta-te.