quinta-feira, outubro 21, 2004

Respirar fundo


Antecipar-me. Abrir a porta de casa, receber a frescura inaugural da manhã, acondicionar nos ombros a penumbra, o início do dia. O movimento oblíquo e ainda narcotizado da cidade, das pessoas, dos automóveis, vermelho, verde, percorrer a avenida da liberdade, ondear o marquês, subir as amoreiras. Recolher nos olhos, ainda apertados de sono, a proclamação de um dia chuvoso. Deslizar na A5, palmilhar a verdura de monsanto, observar o sono dentro dos carros que me ultrapassam, inventar na minha pele e nos meus gestos trôpegos a actividade. Tirar uma mão do volante, esfregar o rosto, oito menos um quarto em números alaranjados, descer a auto-estrada absorto na nebulosidade pensativa das tarefas do dia, reduzir a velocidade, curvar, perder a vista ao asfalto, fender o vale do jamor, estacionar o carro e pegar num segundo, em vinte segundos e oferecer-lhes a ondulação das árvores, o seu fôlego no regresso do encarvoado da madrugada.
Fintar o dia, amplificá-lo, ter toda a esperança num bolso do casaco e mostrá-la a quem passa, dizer bom dia, entrar no balneário, despir o casaco, esvaziar os bolsos. Calçar os chinelos, percorrer os corredores em direcção à piscina, oito horas, um arrepio, o meu reflexo no espelho que perfaz uma parede inteira. A piscina. As luzes artificiais amarrotadas na superfície da água. Verter os meus passos à borda de água. Mexer nela, onomatopeias subtis de prazer. Mergulho, mergulho, deixo-me resvalar até ao fundo, a linguagem voluptuosa da água sobre mim, um corpo sobre o meu corpo, o quase silêncio, a fuga aparatosa da realidade, da sua consistência, o líquido cerúleo num bailado eterno. Vir à tona, respirar fundo, mergulhar. E a serenidade a fortalecer-me todo por dentro, como essas coisas doces que me dizes ao ouvido. Respirar fundo, mergulhar.

Sem comentários: