quinta-feira, outubro 14, 2004

O jantar


Estas são as provas materiais que demonstram, sem margem para erros, a minha perdição. Digo mais: estas fotografias provam a minha vontade em continuar no cerne desta condição de maldito. A minha alma, quando se apercebe das maledicências que solto, aqui e ali, sem pudor nenhum, arrepende-se. Eu não. Eu sigo em frente, em busca de tais tesouros providenciais que ajudem à minha insanidade. Como verificas, há algum torpor e obscuridade nas evidências. Agora, que estás no conforto de um sofá ou de uma cadeira, e lês estas palavras, parece evidente que houve uma certa facilidade na obtenção das mesmas. Pois parece, mas não foi, caro amigo.
Naquele Sábado as horas passavam. Enquanto entrevia o atraso das divas fui dando achego ao preparo do jantar. Em lume muito brando mexia a colher de pau e pensava nestes meses todos passados ao abrigo da minha voz e de pouco mais. O tacho com arroz fumegava. Sem pressa nenhuma, assistia à subida do vapor que se perdia no abismo da chaminé. Pensava. Dava à colher e pensava. Lembrava-me de todos os Sábados e todas as sextas de todos os meses que sucederam e em que apenas esperava dois ou três copos de vinho, umas frases benditas e o arrojar do corpo à cama, de consciência limpa e devoluta. Assim eram as memórias do Inverno, do rugir da solidão, do hábito à solidão e do efeito viciante de bem-estar quando nela me banho. Neste Sábado, enquanto as meninas confundiam as nove com as nove e meia, nem me dei conta da invasão pacífica prestes a acontecer, nem da falta que momentos como este me fazem. No deserto e nos costumes de rapaz despovoado há mais a acontecer do que se imagina. Pensar, não pensar, deixar de pensar, deixar de ouvir, o silêncio, uma multidão de vozes, por fim, a paz. Depois de muito tempo a paz. Deixar de desejar, deixar de sonhar, deixar de fora a esperança. Deixar de ter medo. Na lentidão da noite e nesta viagem de pensamentos incertos, o jantar predispôs-se, mesmo à medida do toque da campainha.
Uma mulher, por mais vulgar que seja, encerra sempre um mistério. Exponencialmente, mulheres encantadoras como a Sara, a Cris e a Cláudia (que aparecem na fotografia) encerram os mais gulosos mistérios. Desde o primeiro abraço, enquanto se livram do casaco e do frio desajeitado de Maio, ao beijo que o meu rosto nunca se cansa de repetir, mulheres assim são os maiores acenos de bonança que um homem pode ter. De nada serve observar, no reflexo da janela, a minha burlesca figura, segurando uma colher de pau e pensar que ainda estou sozinho, como nas outras noites da semana. Elas tomam conta do espaço, do ar meio frouxo desse espaço e convertem-no num pequeno oásis. Se não for pelos gestos, se não for pela graciosidade, é, certamente, pelo tom de voz ou pela maneira enigmática – lá está o factor mistério outra vez – com que argumentam a sua presença. Tão bem quanto eu sabes ao que me refiro.
Entretanto, posta a mesa e servido o vinho, a naturalidade do evento começa a arrulhar os sentidos. O vermelho do vinho e o vermelho negro do sangue quente. É conhecida a influência do néctar de Baco nos corpos mortais. Normalmente, é a luz desbotada, são frases sem nexo e sem verdade, são vozes transformadas em gritos e são silêncios a amortecerem a conversa. Mas estas presenças femininas não pertencem ao comum das gentes. Se eu te disse, há pouco «encantadoras» devia ter escrito, a vermelho e em letras grandes, «mulheres inebriantes, encantadoras e inteligentes». Da singularidade que estes encontros produzem conservo as frases agrilhoadas como serpentinas no infinito da sombra, retenho os momentos de humor que apagam da pele todos os resquícios de aflição, surgem, em boa verdade, as partículas mais elementares de vida feliz.
E este céu que nunca mais se ajeita.