domingo, março 27, 2005

Wim e Ingmar


Por coincidência ou não, calhou-me ver hoje dois filmes de dois sublimes realizadores. Retardei estas palavras ao limite máximo. Não sabia o que escrever porque tive receio de atordoar esta sensação revigorante que ainda permanece e que me mantém preso às imagens que afortunadamente vi. Então o que me faz resistir ao adiantar das horas? O que me faz persistir em busca daquelas palavras exactas que dignifiquem tamanha volúpia fotográfica? Porque tanto Saraband como Land of plenty são exposições fotográficas. O primeiro é um monumento aos rostos sofredores, aos interiores plácidos e submersos em diálogos perfeitos, que se engrandecem ao ritmo do silêncio e do Passado. Land of Plenty, de Wim Wenders, resplandece de planos cinematográficos monstruosos, recorta a sombra humana escondida de uma América raramente vista e a coloca na plena luminosidade da sua geografia; Sol sobre o rastejo do esquecimento, a multicultural dimensão do abismo em formato real.
Serve este pequeno texto para agradecer humildemente a Ingmar Bergman e a Wim Wenders que se juntaram e, sem saberem, me ofereceram um dia perfeito, quando ele já resvalava para a usual ribanceira enfadonha.

quinta-feira, março 17, 2005

Em frente dos olhos


Quase pus em frente dos olhos essa longínqua tarde de Verão. Agora não posso escrever sobre isto muito abertamente. Escrevo a ciciar. Ponho aqui estas palavras muito devagar e a olhar em volta, espreitando vozes e inclinações subtis do céu. Não quero agourar, não quero celebrar antes de tempo, não quero que o gelo ou a secura ou a rispidez me encontrem, escondido sob estas nuvens e sob este manto azul, a derramar estes desejos, estas demandas na lembrança. Quase pus em frente dos olhos aquela saudosa tarde de Verão e recordei páginas e páginas manuseadas por dedos densos de calor, de mar, de luminosidade. Arrisco muito quando escrevo isto. Quase a suspirar as palavras, quase a resgatá-las do pensamento como se resgatam os sonhos ao acordar. O que eu pretendo é sacudir do corpo este pó que sabe a gelo, o que eu realmente quero é fazer um golpe repentino no mundo e meter lá dentro o odor do Verão. Baixinho, debaixo da penumbra da cidade e do trovejar contínuo das pessoas, escrever muito devagar a minha necessidade de ter sobre mim outra estação, noutro lugar, e exclamar, mesmo no centro disso tudo, que é necessário que os dias se alonguem e as horas não fiquem a pingar mais as gotas do Inverno. Por isso, quase punha à frente do rosto estas nuvens e este azul que as atraca. Por isso, antes que a intempérie me encontre a debicar a memória dessas tardes fundas, tenho que escrever muitas vezes Verão Verão Verão Verão Verão Verão Verão, até fazer estilhaçar de vez este tempo carcomido e sem jeito nenhum.

sexta-feira, março 04, 2005

Million Dollar Baby


De todas as vezes que vou ver um filme de Clint Eastwood desconfio. Talvez se trate de falta de fé, talvez porque já não acredite que ainda existem homens (e mulheres) que nos podem salvar deste descontrolo emocional em que vivemos. Lembro-me de Imperdoável, lembro-me de As Pontes de Madison County, lembro-me muito bem de Mystic River. Todas as vezes duvido que consiga fazer melhor, que consiga melhorar o que, à primeira vista, parece impossível de ser aperfeiçoado, em todas as vezes desconfio da grandeza do seu dom e em todas as vezes me cubro de vergonha. Ontem, não foi o constrangimento que encurvou o meu corpo e o fez observar de muito perto a incivilidade das minhas dúvidas. Ontem, tombei porque levei mesmo um soco no estômago. A lição deste homem, com 74 anos de idade, ficará num lugar especial do meu corpo (não só da mente, mas do corpo), porque, esse homem, essa criatura mítica, essa figura eterna do cinema contemporâneo, pegou no seu punho e enfiou-o sem «piedade» na minha barriga desamparada. Eu sei que Clint Eastwood lá deve ter os seus defeitos mas é muito difícil imaginá-los quando vemos este trabalho. Million Dollar Baby é um filme maravilhoso. Não há outra palavra que o descreva melhor. Não pode haver outra palavra que o publicite melhor. Ou então, se calhar, não devia existir palavra alguma para o definir e ser Million Dollar Baby uma única palavra que englobasse muitas outras: humildade, perdão, bondade, força, verdade, pena, inspiração, compromisso, responsabilidade, coragem, ânimo, sofrimento, dor, coração. Amor.

terça-feira, março 01, 2005

Debaixo do pó, dentro de uma arca


Quis interromper a correnteza dos dias em branco. Quis relatar algo especial, que descrevesse com detalhe um acontecimento valioso, ou apenas uma onda de pensamento. Eu sei que ela vem e que ela vai, consoante outros apelos e mais urgentes necessidades. A inspiração, o alento dos que criam e dos que querem fazer dos actos simples generosos monumentos de felicidade, a verdadeira. Não sei se é deste frio feito matéria espessa e aglutinadora das ideias geniais mas, a verdade é que, hoje, nada de coerente sairá destas linhas. Reassumir o hábito diário da escrita, recuperar o uso do improviso e assistir ao crescimento desconexo que estas palavras trazem. Seguir o impulso, perseguir-lhe o odor em cada esquina, abrir uma fenda no silêncio, na noite branca, e entornar uma multidão de frases sem ordem nenhuma, como um bando de lunáticos, evadidos de uma instituição mental. Então vasculhei histórias antigas, feitas noutro tempo de maior fulgor imaginário, soprei o pó aos manuscritos assentados no fundo de gavetas e de uma arca que eu nem imaginava ter. Nesta noite, muito próxima do vazio, não me resigno. Deixo um conto muito antigo e que me fez atrair ao rosto um breve sorriso. Porque entre esse dia e este dia não existiram muitas noites frias como esta.
E a história diz:
Sem dúvida que o tempo passa depressa. Entre os dedos, dias. Entre os dedos escapam-se as horas dentro dos dias, a vida. As pessoas cada vez mais longe. As vozes das pessoas cada vez mais longínquas, a ouvirem-se de muito longe, mortiças, fracas, quase imperceptíveis, à espera de respostas, nem que sejam ocas mas que sejam respostas; o vento, a percepção de um som vindo da boca de uma pessoa que nos é familiar, as pessoas fogem umas das outras e não sabem fazer outra coisa. Pensam «depois telefono». Pensam «depois respondo-lhes, mais tarde, quando acabar o que tenho de fazer». Pensam «ainda só passaram dois dias». Pensam «só passaram três semanas». As pessoas dissipam-se diante dos dias e do tempo, e depois não lhes resta mais nada.
Depois, a Inês. Encontrei-a tímida, algo arisca, na Outra face da lua. Oculta no canto, perto do balcão de atendimento com um casal de amigos meus. Quando entrei várias pessoas me olharam, interromperam as suas conversas e olharam na direcção da porta, logo a seguir ao biombo de tijolos de vidro de várias cores. Amansei os meus gestos, condenei o meu corpo a uma ligeira pausa logo ali, encadeado pelo brilho de tantos olhos. Enquanto tirava o casaco voltaram as conversas subtis, aquele marear de sons, libertaram-me. Foi um instante. Vi-os ao fundo, a beberem chá com leite. Cumprimentei-os, sentei-me, serviram-me cumprimentos cordiais e mais que isso, sorrisos, a dizerem qualquer coisa sobre o meu cabelo ou o casaco demasiado quente para a época. A Inês diante de mim. Olhos verdes enredados numa névoa de mel. A boca igual à da actriz Patrícia Arquette. Os mesmo dentes caninos encavalitados, a mesma sensação libidinosa quando se ria. Contive-me. Sorri-lhe a intentar tocar-lhe com os lábios. Depois entrei na conversa. Só para disfarçar e antes que fosse sujeito a um reparo qualquer. O meu encantamento crescia. Havia o começo. Dentro de mim era óbvio aquele crepitar que só sucede nos melhores dias e muito raramente. Cá dentro o primeiro revolver do que dormita há tanto tempo. A perder-me nos seus detalhes, da roupa que trazia posta, do colar azul que exibia no pescoço. O casal de amigos, juntos, num beijo de meiguice. Baixámos os olhos, os dois ao mesmo tempo, o som de lábios com lábios, que não eram os nossos mas que eu queria que fossem. Eu a sorver-lhe uma voz muito ténue que me obrigava a chegar mais perto, aqueles lábios mais perto, aquela voz dela sem se deter, a contar histórias, histórias da vida que ela vivia em Londres. Estou condenado, pensei. Londres. Estou salvo, pensei. Londres, Inglaterra, longe. O freio da distância. Mas ela continuava. Estávamos os três a olhá-la, a ver aqueles dentes brancos gastarem lentamente os lábios de adolescente num rosto de mulher, a vê-la contar mais histórias, os seus cabelos escorridos, finos, revoltos. Nós os três à espera dela quando se punha a divagar, e aquela voz tão frágil, de timidez, de perda, sei lá, uma voz do fundo de qualquer coisa que quer dizer tantas coisas. E seguiu, porque nos escutava atentos, continuou. Naquele tempo todas as pessoas atrás de mim eram conversas surdas porque eu só a ouvia. A luz humilde que pendia sobre nós era já a noite do céu lá fora porque éramos nós os quatro e as palavras e o bule de chá vazio, com restos de ervas no coador de metal. No jorro de palavras ouvi «namorado». Ouvi, impaciente, «o meu namorado que está em Londres». E depois não escutei mais nada. Nem as vozes dos outros, nem as vozes dos que passavam na rua, nem a música, nem o som da minha perna inquieta. Depois deixei de ouvir todos os outros sons e só quis ver as suas cores (Porque os sons também têm cores). Contemplei o sorriso dela, muito vívido. A sala iluminou-se mas o céu lá fora, que era uma noite escura, caiu sobre mim. Quando voltei o rosto a apalpar as horas estavam a deixar-me à porta de casa e ela já me dizia adeus com os dedos colados no vidro do carro. Eram rios de leite, escorrendo no vidro turvo de tanta luminosidade.