quarta-feira, outubro 12, 2005

Breve desunião do tempo


A partir de agora o tempo multiplica-se. Corre depressa, abranda, saltita, sobe as árvores nuas, pendura-se nos seus galhos, balança. Cai. A partir desta noite, vejo todos os ponteiros de todos os relógios mais longos que as suas sombras. São duas e um quarto, são quatro e meia, é uma hora, é uma e trinta e cinco. É meia-noite. O tempo que traz lá dentro uma revolução, uma revolta, uma transmutação. Fixado à parede de cal, o som metálico dos ponteiros é enrolado numa sombra que diz negro e diz dano e diz angústia. Vejo estas horas desiguais a serem uma lágrima ao fundo do corredor. Percorro-o, introduzo-me de manso nessas águas turvas, tento espreitar os buracos que não consigo alcançar com as mãos, silencio os meus passos e espero uma resposta, uma voz mortiça ao fundo, que do negrume me diga esperança ou suspire confiança ou murmure luz luz luz. Mas eu não vejo mais que pintas de alcatrão grosso. Eu não vislumbro nenhum rosto e muito menos escuto vozes ou suspiros ou murmúrios. Sinto a breve desunião do tempo. Sinto, vindo de cima e dos lados, numa explosão uníssona e crepitante, a tômbola das horas. Não tenho esperança, não tenho fé, não tenho, ao perto, a luz. Como se visse, a partir de agora, as horas do fim. Nítidas, nítidas.

sexta-feira, outubro 07, 2005

O homem da gravata


«Tenho 45 anos e nunca pus uma gravata». Ramiro Gonçalves levantou a voz, no meio de uma conversa entre colegas de trabalho. «Nunca pus uma gravata e repudio a coisa.» Sem que ninguém lhe ligasse, Ramiro Gonçalves resolveu adoptar um tom algo sibilante ao que dizia, aguardando a merecida atenção. Como os outros continuavam a rir, de copo na mão, e a discutirem os assuntos mais insípidos, Ramiro pôs-se todo num grito. «Usar gravata é um acto ridículo que não traz nenhuma utilidade ou benefício à vida das pessoas. A gravata é um objecto supérfluo.» Assim que deixou a voz abater-se largou da boca um sorriso de triunfo. Todos os homens e todas as mulheres pararam de beber e interromperam as respectivas conversações. Foram 4 ou 5 segundos em que o silêncio se sobrepôs à algazarra. Uma paz feita de cimento veio cair sobre todos os sons dentro de cada um dos movimentos. Ramiro Gonçalves, sem copo na mão e com o fôlego já recuperado, destilou nesse sossego instantâneo o seu olhar científico. Preparava nova intervenção. Nesses 4 segundos não tirou as mãos dos bolsos e fez questão de manter sólido aquele sorriso vitorioso. Enquanto todos processavam as palavras estridentes, que ainda flutuavam à superfície das bebidas, Ramiro, o homem que nunca usou gravata, reunia dentro dele uma força distinta. Esperou que chegasse o primeiro movimento, esperou que a onda de silêncio se dissipasse, esperou, com o sorriso sempre bem assente na cara, que alguém debuxasse a mais pequena reacção ao que tinha acabado de dizer. Os seus olhos, em dois segundos, desbravaram a sala cheia de mãos e cheia de copos e de rostos atordoados. Nessa profusão de vidro e líquido, reparou que haviam muitas gravatas. Então, antes que uma delas se pusesse a bailar e a puxar a voz ao dono encarniçou-se da força excepcional que explodia dentro dele e disse «A gravata é dona dos homens que a usam. Cada homem com gravata é um fantoche e gosta de ser fantoche. De manhã, enquanto a põem em frente ao espelho, dando voltas e nós e mais voltas, está, de facto, a perder tempo. Afinal, para que serve uma gravata? Embalado, Ramiro, de camisa branca franqueada, tornava evidentes as veias do seu pescoço. «Afinal, caros bonifrates, de que vos serve esse pedaço de tecido aí pendurado ao pescoço?
Aquele homem eriçado, um recém-nascido inimigo das gravatas, pendurou o discurso e estacou-se à porta do bar. Abriu-a e saiu. Atrás de si uma comoção que aumentava. Atrás dos seus ombros, a esbater na montra com a impetuosidade de uma tempestade, o tambor da multidão, as vozes da ira, o vidro a estremecer, a ondular-se em múltiplos movimentos.
O senhor Gonçalves sentou-se no lancil. Enquanto os automóveis passavam e paravam diante do círculo vermelho, enquanto a coruja no jardim em frente piava e esse som se diluía no amansar da cidade, enquanto as gravatas, dentro do bar, voltavam ao frenesim dos copos e das conversas da largura de um canto escuro, ele pensava: «de um momento para o outro tudo isto se consumirá. Porque hoje, depois de muitas possibilidades, não te encontrei. Agora, não tenho mais nada a dizer. Devia ir dar uma volta, sei lá, apanhar o ar das pessoas na noite, não sei, sentar-me no banco de jardim, estender as pernas, ver os estrangeiros de mochila às costas e os corpos feitos de uma asneira que não compreendem. Pois devia. A qualquer momento tudo isto ruirá. Não há nada mais a contar. Sigo como as velas ao vento. Sou eu mesmo o vento. Sou a poeira que vai no vento e as pessoas não notam, não vêem. Não querem ver»
Amanhecer, entardecer, anoitecer. E depois? Há alguma coisa que seja proveitosa quando ninguém está a olhar? Como um esconderijo. Como a cortina que oscila e já não é Verão. Mas parece.

segunda-feira, setembro 12, 2005

A pele por baixo da minha pele


1. O Dr. Salvador arreda os olhos e abana a cabeça. Junho, de tons ocres, ar espesso e volátil. Diz-me meias palavras. Diz-me «não devias, José», diz-me «eu acho que é um risco voltares às lides da nossa paróquia». Tenho os braços atrás das costas, Junho, de paladar seco, a luminosidade veraneante na cal da aldeia. Tenho a janela aberta nos meus olhos e nas suas rugas. «Não podes, José». Repetia «não», redizia «a tua saúde, José», alimentava a sua preocupação no meu rosto pálido e pensativo. A janela entreaberta, os cães à sombra e nas suas línguas o retinir da tarde quente.
Agradeci-lhe os conselhos e segui. Tinha no corpo e na mente o vício. Tinha na minha língua infindáveis discursos. A vontade de sorver a felicidade dos outros e ouvir o meu Senhor, lé em cima, clamar o Amor, a celebração do Amor. Sai do consultório do Dr. Salvador pleno de convicção. Será a minha última cerimónia. Amanhã, Junho, de águas tépidas, amanhã, nestes dias abrasivos e longos, vou casar o Daniel e a Celeste. A minha última cerimónia.
2. Estou nos meus aposentos e assento as vestes neste corpo dormente Na igreja aloja-se um murmúrio solene. Vício, vontade, alegria. Neste quarto pequeno preparo-me, e nas paredes o som dos miúdos, as cadeiras, o eco que mergulha na imobilidade dos santos. Anos, anos, o meu vício nestas paredes, nos detalhes domados, no pó assente, anos, anos. Tenho no corpo o vício da felicidade alheia. Preparo-me, benzo-me. A minha última cerimónia. Emociono-me. O meu corpo soterrado de memórias. Os meus dedos amparam o livro do Senhor. Os meus passos fora de mim, de encontro aos móveis escuros, os meus passos como os últimos passos de toda a minha vida. A minha pele treme, a pele por baixo da minha pele treme, o vício, a alegria dos outros, o meu néctar, a minha vida inteira.
3. Saio, fecho a porta e não ouço eco atrás de mim. Dirijo-me à tribuna, o murmúrio a elevar-se, uma onda de vozes baixas, uma duna de bocas misturadas com os olhos brilhantes todos juntos à espera, cravados em mim. A iluminação da felicidade, o meu vício. Sinto-me nos gestos tímidos das pessoas sentadas à minha frente. Dito palavras, arranjo o meu último discurso e arremesso-o aos noivos. Daniel e Celeste à minha frente, felicidade, ânsia, a opulência do silêncio, as minhas mãos trémulas, Deus, Senhor. Amai-vos, perco o tempo e perco as palavras. Daniel e Celeste estáticos são duas sombras, à espera, à escuta. Amai-vos e respeitai-vos, a igreja repleta, um abafo de olhos e de fatos cinzentos, azuis. Amai-vos e respeitai-vos até que a morte vos separe, Daniel e Celeste. A minha voz inaudível. O peso nas pernas, no peito, dentro do peito, a querer sair. Ao fundo, o Verão inteiro a querer entrar. Penso: não quebres agora, José. Deus, vício, Senhor, Deus. Amaino as mãos a tribuna. Declaro-vos marido e mulher. Palmas, sorrisos, beijos, o Amor, a felicidade, o meu vício, inclino-me sobre a tribuna. Tombo, o fim do princípio do meu encontro com Deus. Vício, o meu amor pelo brilho instantâneo dos outros.

domingo, setembro 04, 2005

O mentiroso


Havia muito tempo que carregava aquele grito às costas. «És um grande mentiroso». Todos os dias, aquela voz estrídula a exclamar-lhe por dentro mentiroso mentiroso mentiroso mentiroso. Sempre lhe apeteceu contar aos outros pequenas histórias, ligeiros enredos que fossem avessos à monotonia resultante dos dias. Queria desviar aqueles olhos tristonhos do chão e pô-los ao nível dos seus. Queria, no fundo, alegrar as pessoas. Todas as historietas que contava tinham um fundo de verdade e eram muito claramente influenciadas pelas coisas que via e pelas coisas que sentia. Num impulso, derramava as personagens, os eventos e os sítios. Aquilo fazia-o fervilhar. A sua única preocupação era descobrir até onde o levava a sua imaginação. Não pensava em engano ou desilusões. Não pensava na mágoa que os outros pudessem sentir quando, finalmente, tivesse encontrado o fundo ao saco imaginativo e levantasse a cortina, revelando então a verdade. Eram pedaços da sua criatividade e gostava de os expor às pessoas amigas. Como quem encosta às paredes duma galeria os seus quadros ou suas fotografias. Queria ser um incitador ao devaneio imaginário, um mostruário de novos mundos. Para ele, cada história começada era uma janela aberta à rua, fora do quarto bafiento da realidade. Ele dizia que aquelas narrativas fantasiosas acalmavam a sua frustração e lhe davam esperança. Era isso, ele queria ter esperança. «Um dia entro numa destas jornadas e nunca mais regresso.» Adeus hipocrisia, adeus, crueldade, adeus injustiça, adeus impossibilidade. Por isso, inventava pequenos relatos, que atirava aos outros com todo o ardor, acreditando que, com isso, as pessoas iriam sorrir e deixar de lado as agruras da actividade moderna. Era mesmo isso. Ansiava libertar toda aquela fuligem e trivialidade que exilava das pessoas com quem contactava. Sempre os mesmos problemas, sussurrados nas mesmas frases, às mesmas alturas do dia.
Agora gritavam com ele, «mentiroso, mentiroso, falso, falso, falso». Mas o calor desabou sobre a cidade quando ainda todos o acusavam. Esse estrondo fez dispersar as vozes acusatórias. Cada um seguiu o seu trajecto, cada um fechou o seu grito e prosseguiu, como se, de repente, houvesse uma mão que lhes desligasse um botão no corpo. «O que é que se passa?» O homem, a quem acusavam de ser mentiroso, queria que o olhassem nos olhos e vissem o seu espírito incrédulo. Queria correr atrás das pessoas e bater-lhes nos ombros, e depois mostrar-lhes o seu rosto cheio de verdade, a sua verdade. Mas as vozes acusativas desapareceram entre o polvilho da rotina diária. O homem da mentira ia andando de um lado para o outro. Incerto, com gestos ainda difusos, entrava no período do silêncio. A noite abriu as suas asas e escureceu todas as palavras e todos os pensamentos se tornaram certezas. Mas nenhum deles deixou de soar a mentira.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Estilhaços


Quando subia a rua sentiu as janelas tombarem sobre a calçada íngreme. Dentro das janelas havia vozes. Dentro das janelas viam-se gestos e vozes langorosas que flamejavam de indiferença, de miserabilismo. Viu os trilhos de metal que carregam os eléctricos. Ao cimo da rua gente passava e abafava os seus pensamentos. Cada passo muito vagaroso, cada lembrança a luzir-lhe por dentro, a pressagiar-lhe, de repente, tudo o que queria dizer. No eco dos seus pés, que embatiam no chão em lentidão extrema, quase inertes, assistiu-lhe, porventura, um tal fulgor no espírito que lhe palpitaram do cimo da língua todas as palavras que deviam ser ditas.
E disse: talvez o mar sejam as pessoas, talvez a voz que ouço do mar sejam as pessoas todas juntas, todas tristes que gritam, talvez o mar inteiro seja um grito e talvez esse grito só seja escutado em raros momentos, quando debruçamos a nossa alma sobre ele.
Talvez tudo seja feito com ferro, com vidro e com madeira. Talvez tudo seja feito de ferro e de vidro. E de estilhaços.

terça-feira, agosto 16, 2005

A generosidade da Natureza


Faço intenções que isto resulte. Deposito nas palavras que agora escrevo uma ventania, um repentino movimento a clamar alvoroço e a pedir vozes, a pedir diálogos, a resgatar gente, que venham até cá, que se lembrem de tocar à porta, é castanha, de madeira, que venham, são bem-vindos. Contam-se histórias, combinam-se discussões sobre o mundo e sobre os que nele depositam as vulgaridades amontoadas em dias seguidos à espera.
Ontem a maledicência frontal sobre um rapaz. Ontem alguém lhe disse que a natureza não tinha sido generosa com ele. Um ribombar lá dentro. Aquelas palavras sem dó, aquelas palavras como um baloiço a ir e a vir à conta dos empurrões da memória, aquela frase o dia inteiro a pairar como um guarda-chuva em dia de tempestade. Uma rapariga meio tonta, sem graça nenhuma, sem nenhum motivo evidente para ser tida em conta disse-lhe aquilo, sem ele estar à espera. É o pior. Quando se trocam palavras e formam conversas simples, os olhos nos olhos ou nos detalhes do outro, quando a passagem breve dentro do café é causa de distracção e as coisas fora do sítio deslocam-se à vista desarmada, quando ele sentado, quando ela a ouvi-lo dizer coisas eloquentes, quando ela retém o que ia a dizer porque lhe apetece sorver mais um pouco do café com leite, quando ele, cândido, lhe confessa a desilusão sobre as mulheres, sobre a vida que leva, quando por fim põe pausa na língua e espera um consolo, uma concordância em feitio gestual, ela, por impulso, por maldade, por incompreensão do silêncio que lhe vê no rosto diz-lhe a natureza também não foi lá muito generosa contigo. Eles não são amantes, eles não se encontram muitas vezes, eles nem sequer têm gostos em comum. Aquela frase, a ele, corrompe-lhe o interior. É um ser estraçalhado que agora se levanta e acerta conta com o empregado. Ela quando se levanta e faz o mesmo já não se lembra do que disse, porque entretanto, passaram muitas vozes e passou muito tempo a enviar mensagens do telefone e lá fora chovia. Ele, por estar entregue às fraquezas de uma personalidade extraviada pensa muitas vezes ódio, pensa muitas vezes com muita força pregar-lhe um estalo ou levá-la para um descampado e aí, na mudez da escuridão, mostrar-lhe que, afinal, a bondade da natureza tinha sido bem maior do que ela pensava. E demonstrar-lhe que, em certas ocasiões, é do agrado dos deuses ser-se discreto.
Os pensamentos são facas aguçadas. As imagens de violência misturam-se naquela vaga de chuva e dos céus ele não vislumbra ousadia. Fica a olhar um cinzento amolecido debaixo do toldo de plástico a dizer Café da Praça em letras vermelhas. Ela ainda dentro do rebuliço das bandejas prateadas conversa com alguém que encontrou. Não se lembra. Nele, o ódio. Ele, já húmido daquele céu sem piedade, quer mal aos outros, quer que a vida dela seja um poço negro, quer ficar sozinho, quer recolher os gritos de que a cidade é feita e arremessá-los aos rostos dos felizes como ácido. Ela, entretanto, sai, e olha para os lados em busca dele, a chuva pinga abundantemente da borda do toldo branco que diz Café da Praça em letras vermelhas, ela tropeça em alguém que entra empurrado pela chuva. No banco de trás de um táxi, uma angústia muito grande a afastar-se.

domingo, julho 10, 2005

O tempo a passar


Quando reparo nas datas nem acredito. Quase dois meses. Receio que se esgotou o engenho de enrolar palavras dentro de mim e de as mostrar aos outros, afoitas, em forma de sonoridade aprazível. Não tenho escrito, a não ser em ligeiros momentos do dia, em que construo duas ou três frases na minha cabeça para depois logo as arrumar à pressa, retomando a atenção devida aos obstáculos dentro da cidade. E o tempo passa. Há uma massa espessa que cobre o tempo e o encobre dos sentidos; e o tempo passa, anda como um assobio volvido ao céu, corre, e esquece a nossa pressa e a nossa vontade. Voa, multiplica-se, alastra-se; o tempo, às vezes, parece a mãe de todas as aves e retira de cada uma delas o seu olhar ágil sobre as estradas, sobre as terras lavradas, sobre os vales virgens, sobre os telhados cobertos de musgo e de silêncios, de temores. O tempo que me persegue e me afasta. Estes dias de verão, do regresso a casa, carregando na base do pescoço uma caixa cheia de cinza invisível. Quero escrever, quero escrever, quero muito escrever, todos os dias queria escrever, queria inventar palavras novas e queria apoderar-me desta ambição literária, torná-la hábito, convertê-la numa necessidade premente, drogar-me com os espaços entre as palavras, pegar nas vírgulas e nos acentos e injectá-los nos meus músculos, golpear o corpo, entranhar lá dentro muitas letras e deixar fermentar frases no ardor do meu sangue.
Mas o tempo passa e esquece. Institui-me a rotina. A bafienta marcha do tempo. Quantas vezes me lembro de reparar nele, de o puxar pelos braços, ou pelo tronco, e apoderar-me da sua turbulência. A ver se me lançava eu próprio numa voragem criativa que nunca exaurisse.

terça-feira, maio 17, 2005

A sinuosidade do dia seguinte


Finalmente. Quero que os dias me castiguem, quero que as lembranças desses dias me ceguem e me façam largar a memória. Como as marés, venho desaguar às tardes de Maio sem noção do tempo. Caminho e destruo-me. Às vezes, acompanho os meus pés descalços na areia com pensamentos embebidos na brisa da tarde. Às vezes, quando me quero aproximar, há distâncias e há incómodos. Um intervalo muito fundo, de longitude incerta. Finalmente, deixo abrir um pedaço na noite e assisto à dança da claridade em cima da minha pele. Dissipo algumas palavras. Sem querer dizer nada, sem querer alcançar nada, sem desejar nada. Quando a noite realça a indiferença do futuro. Quando a noite expõe a sinuosidade do dia seguinte. Quando me quero esquecer, quando pego na tesoura a recortar um segundo para delapidar um minuto. A esperança dum caminho de folhas secas, à espera do vento crespo da montanha.
Tenho um punhado de cabelos brancos entre os dedos.
Vejo no asfalto um pingo de chuva que se desfaz nele e o enegrece.
Encosto a cabeça na cadeira, relaxo o corpo até o desapertar de mim, estico o braço ao longo da janela em andamento, observo o mar e a espuma branca na areia. Vejo o céu.
Ando depressa, atravesso a rua, do canto do olho sinto os carros quietos, há outros corpos que passam e que se cruzam comigo, ando a perseguir o conforto e a ordem, os sonhos, os sonhos a fugirem sempre que acordo, sigo agregado a estes pensamentos, ao anseio de os ver, um dia, pintados em tinta azul num muro disposto a ser demolido.
Por cima de mim, árvores.
Em cima de mim, um céu de árvores, limpo.
Aqui, nesta terra demorada, os corpos das mulheres são lembranças. Nesta luminosidade, resta em cada corpo martirizado, a ofensa do abandono. Lembro-me.

Este céu, este mal


Na cama vejo além do tecto, vejo o céu. Sou ridícula. Nestas roupas afoitas sou uma mulher desmembrada. Quero, não quero, tenho medo, tenho medo deste céu sujo e que ele traga os teus olhos perto dos meus olhos. Deitada nesta cama só vejo a tensão do mundo espalhada sobre a casa. O telefone. Num impulso, levanto-me. O céu negro. O céu espesso e negro. Atendo, a minha voz é uma gota desse céu. Teresa? Ainda aí estás? Anda lá. A Joana. A festa. O céu que desaba. As nuvens são monstros e gritos que fazem vibrar esta cama, estas paredes, eu. O que fazes ainda aí? Dou-te quinze minutos. Vá lá. Nem imaginas quem cá está. Ele. Tu que eu quero, que eu não quero, não posso. A Joana quase a sair de dentro do telefone. Vem, vem, vem.
Quando desço as escadas não ouço o céu. Quando abro a porta do prédio não tenho sobre mim o espanto dos outros. Há pessoas que passam. Há conversas ténues que passam. Espero o táxi na borda do lancil. O céu embrulhado, vigilante. Não vás. O céu rude, os olhos do céu negros. Os automóveis passam; entro no táxi. Boa noite. Para a rua das Acácias, por favor. O senhor taxista, a música que irrompe do rádio, está um dia pesado hoje, não acha? Solto as palavras que posso. O céu enorme e negro. Enrolo palavras nas palavras do senhor taxista. Tenho os olhos nas manchas da cidade. A velocidade do automóvel. A música e depois as notícias e depois manchas verdes no vidro. Depois o céu aberto e escuro, muito perto. O senhor taxista empolgado com qualquer coisa, as novidades do mundo. Os olhos dele no espelho retrovisor. Os meus olhos nos dele muitas vezes. O céu como uma manta negra. O brilho do espelho retrovisor. Asfixio e ponho os olhos na estrada, nas árvores, nas casas que fogem. Tenho no peito os olhos do senhor taxista. O céu brutal, o céu com uma voz alongada, o céu com uma voz temerosa. Os olhos do senhor taxista em mim. O abrupto de todas as cores misturadas em todos os gritos. A convulsão do metal do táxi. Um corpo que é violentado. O céu como uma prensa. O céu como uma piscina de sangue, de metal retorcido e pedaços de roupa.
Em cima de mim já não existe céu. Há uma névoa e aromas negros dentro de mim. Tenho um homem deitado no meu colo. Tenho o sangue do senhor José nos meus braços. A convulsão do mundo. Eu sentada. Eu como uma estátua, olho o senhor José. Tem os olhos abertos, e neles o medo. Coloco a minha mão na sua testa e o céu está dentro de mim. Quando os olhos do senhor José se fecham é o céu que se fecha em mim. Eu sou a paz que é feita de sangue.

quarta-feira, abril 20, 2005

2046


Há filmes que se extinguem e se esquecem, há filmes que se alcançam. E existem outros, como 2046, que me fazem adquirir mais vida, mais desejo pela vida. Ocorrem à vista os planos impelidos propositadamente aos detalhes e às coisas esquecidas, como o esvoaçar de pés, dentro de sapatos pretos, a delimitarem no soalho as palavras vindas de cima, a suspensão angelical do bico da caneta sobre o papel, perpetuando o ritmo delirante das ideias, o baile das cores quentes, a presença massiva de sensualidade e de vultos no ritmo perfeito. A mesma exiguidade entre os corpos e a mesma intimidade dos espaços que In the mood for love. É um filme em forma de arte, que grita talento em cada plano, em cada pausa entre as vozes e entre os rostos que se observam. E depois, a servir de amplificação ao filme, há ainda a música. Que se mistura no cenário e nas roupas, que escorrega delas até à sombra, que é o som de uma porta que fecha, que é a aspereza de muitas vozes entrançadas no fumo que ondula perto do tecto, que é aquele lugar invisível entre uma pergunta e uma resposta. No final, quando me acontecer o alude abrupto de imagens de vida, estas vão lá estar

sábado, abril 09, 2005

Mar Adentro, tantas vezes eu quis


Não sei se o teu coração também se encolheu e depois expandiu quase ao fundo do mundo, como o meu, após teres visto Mar Adentro. Enquanto esperava que o Metro chegasse, tentei construir frases que expressassem correctamente o avesso da minha pele. A onda densa e secreta que sinto por dentro e toma conta de mim quando o que vejo, o que ouço, o que cheiro, o que tacteio, é admirável. Não sei se, tal como eu durante o filme, ficaste sozinha, sem cabeças à tua frente, sem cadeiras ou escuridão, sem paredes e sem portas e perdeste a noção do tempo, do espaço e do palpitar do teu peito nesse espaço e nesse tempo. Queria perguntar-te, agora, ignorando as ruas, os prédios, as planícies, as encostas, os vales, as montanhas que nos apartam, se o tivesses visto ao meu lado nos teríamos encontrado e contemplado o sorriso um do outro, plenamente repletos de vida, e de morte. Não sei se o teu rosto se contraiu, não sei se os teus olhos se aguaram, não sei se durante Mar Adentro te sentiste pequena e grande, te imaginaste a olhar o espelho e viste, precisamente como eu, dois espectros, duas formas de luz, vizinhas como dois grãos de areia numa praia e, no entanto, impossibilitadas de se tocarem, de se acariciarem, nem que fosse por um momento. A vida e a morte.

sexta-feira, abril 08, 2005

Os dias do fim e do princípio


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saía da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e ocos, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros cochichavam. Rugiram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.

domingo, março 27, 2005

Wim e Ingmar


Por coincidência ou não, calhou-me ver hoje dois filmes de dois sublimes realizadores. Retardei estas palavras ao limite máximo. Não sabia o que escrever porque tive receio de atordoar esta sensação revigorante que ainda permanece e que me mantém preso às imagens que afortunadamente vi. Então o que me faz resistir ao adiantar das horas? O que me faz persistir em busca daquelas palavras exactas que dignifiquem tamanha volúpia fotográfica? Porque tanto Saraband como Land of plenty são exposições fotográficas. O primeiro é um monumento aos rostos sofredores, aos interiores plácidos e submersos em diálogos perfeitos, que se engrandecem ao ritmo do silêncio e do Passado. Land of Plenty, de Wim Wenders, resplandece de planos cinematográficos monstruosos, recorta a sombra humana escondida de uma América raramente vista e a coloca na plena luminosidade da sua geografia; Sol sobre o rastejo do esquecimento, a multicultural dimensão do abismo em formato real.
Serve este pequeno texto para agradecer humildemente a Ingmar Bergman e a Wim Wenders que se juntaram e, sem saberem, me ofereceram um dia perfeito, quando ele já resvalava para a usual ribanceira enfadonha.

quinta-feira, março 17, 2005

Em frente dos olhos


Quase pus em frente dos olhos essa longínqua tarde de Verão. Agora não posso escrever sobre isto muito abertamente. Escrevo a ciciar. Ponho aqui estas palavras muito devagar e a olhar em volta, espreitando vozes e inclinações subtis do céu. Não quero agourar, não quero celebrar antes de tempo, não quero que o gelo ou a secura ou a rispidez me encontrem, escondido sob estas nuvens e sob este manto azul, a derramar estes desejos, estas demandas na lembrança. Quase pus em frente dos olhos aquela saudosa tarde de Verão e recordei páginas e páginas manuseadas por dedos densos de calor, de mar, de luminosidade. Arrisco muito quando escrevo isto. Quase a suspirar as palavras, quase a resgatá-las do pensamento como se resgatam os sonhos ao acordar. O que eu pretendo é sacudir do corpo este pó que sabe a gelo, o que eu realmente quero é fazer um golpe repentino no mundo e meter lá dentro o odor do Verão. Baixinho, debaixo da penumbra da cidade e do trovejar contínuo das pessoas, escrever muito devagar a minha necessidade de ter sobre mim outra estação, noutro lugar, e exclamar, mesmo no centro disso tudo, que é necessário que os dias se alonguem e as horas não fiquem a pingar mais as gotas do Inverno. Por isso, quase punha à frente do rosto estas nuvens e este azul que as atraca. Por isso, antes que a intempérie me encontre a debicar a memória dessas tardes fundas, tenho que escrever muitas vezes Verão Verão Verão Verão Verão Verão Verão, até fazer estilhaçar de vez este tempo carcomido e sem jeito nenhum.

sexta-feira, março 04, 2005

Million Dollar Baby


De todas as vezes que vou ver um filme de Clint Eastwood desconfio. Talvez se trate de falta de fé, talvez porque já não acredite que ainda existem homens (e mulheres) que nos podem salvar deste descontrolo emocional em que vivemos. Lembro-me de Imperdoável, lembro-me de As Pontes de Madison County, lembro-me muito bem de Mystic River. Todas as vezes duvido que consiga fazer melhor, que consiga melhorar o que, à primeira vista, parece impossível de ser aperfeiçoado, em todas as vezes desconfio da grandeza do seu dom e em todas as vezes me cubro de vergonha. Ontem, não foi o constrangimento que encurvou o meu corpo e o fez observar de muito perto a incivilidade das minhas dúvidas. Ontem, tombei porque levei mesmo um soco no estômago. A lição deste homem, com 74 anos de idade, ficará num lugar especial do meu corpo (não só da mente, mas do corpo), porque, esse homem, essa criatura mítica, essa figura eterna do cinema contemporâneo, pegou no seu punho e enfiou-o sem «piedade» na minha barriga desamparada. Eu sei que Clint Eastwood lá deve ter os seus defeitos mas é muito difícil imaginá-los quando vemos este trabalho. Million Dollar Baby é um filme maravilhoso. Não há outra palavra que o descreva melhor. Não pode haver outra palavra que o publicite melhor. Ou então, se calhar, não devia existir palavra alguma para o definir e ser Million Dollar Baby uma única palavra que englobasse muitas outras: humildade, perdão, bondade, força, verdade, pena, inspiração, compromisso, responsabilidade, coragem, ânimo, sofrimento, dor, coração. Amor.

terça-feira, março 01, 2005

Debaixo do pó, dentro de uma arca


Quis interromper a correnteza dos dias em branco. Quis relatar algo especial, que descrevesse com detalhe um acontecimento valioso, ou apenas uma onda de pensamento. Eu sei que ela vem e que ela vai, consoante outros apelos e mais urgentes necessidades. A inspiração, o alento dos que criam e dos que querem fazer dos actos simples generosos monumentos de felicidade, a verdadeira. Não sei se é deste frio feito matéria espessa e aglutinadora das ideias geniais mas, a verdade é que, hoje, nada de coerente sairá destas linhas. Reassumir o hábito diário da escrita, recuperar o uso do improviso e assistir ao crescimento desconexo que estas palavras trazem. Seguir o impulso, perseguir-lhe o odor em cada esquina, abrir uma fenda no silêncio, na noite branca, e entornar uma multidão de frases sem ordem nenhuma, como um bando de lunáticos, evadidos de uma instituição mental. Então vasculhei histórias antigas, feitas noutro tempo de maior fulgor imaginário, soprei o pó aos manuscritos assentados no fundo de gavetas e de uma arca que eu nem imaginava ter. Nesta noite, muito próxima do vazio, não me resigno. Deixo um conto muito antigo e que me fez atrair ao rosto um breve sorriso. Porque entre esse dia e este dia não existiram muitas noites frias como esta.
E a história diz:
Sem dúvida que o tempo passa depressa. Entre os dedos, dias. Entre os dedos escapam-se as horas dentro dos dias, a vida. As pessoas cada vez mais longe. As vozes das pessoas cada vez mais longínquas, a ouvirem-se de muito longe, mortiças, fracas, quase imperceptíveis, à espera de respostas, nem que sejam ocas mas que sejam respostas; o vento, a percepção de um som vindo da boca de uma pessoa que nos é familiar, as pessoas fogem umas das outras e não sabem fazer outra coisa. Pensam «depois telefono». Pensam «depois respondo-lhes, mais tarde, quando acabar o que tenho de fazer». Pensam «ainda só passaram dois dias». Pensam «só passaram três semanas». As pessoas dissipam-se diante dos dias e do tempo, e depois não lhes resta mais nada.
Depois, a Inês. Encontrei-a tímida, algo arisca, na Outra face da lua. Oculta no canto, perto do balcão de atendimento com um casal de amigos meus. Quando entrei várias pessoas me olharam, interromperam as suas conversas e olharam na direcção da porta, logo a seguir ao biombo de tijolos de vidro de várias cores. Amansei os meus gestos, condenei o meu corpo a uma ligeira pausa logo ali, encadeado pelo brilho de tantos olhos. Enquanto tirava o casaco voltaram as conversas subtis, aquele marear de sons, libertaram-me. Foi um instante. Vi-os ao fundo, a beberem chá com leite. Cumprimentei-os, sentei-me, serviram-me cumprimentos cordiais e mais que isso, sorrisos, a dizerem qualquer coisa sobre o meu cabelo ou o casaco demasiado quente para a época. A Inês diante de mim. Olhos verdes enredados numa névoa de mel. A boca igual à da actriz Patrícia Arquette. Os mesmo dentes caninos encavalitados, a mesma sensação libidinosa quando se ria. Contive-me. Sorri-lhe a intentar tocar-lhe com os lábios. Depois entrei na conversa. Só para disfarçar e antes que fosse sujeito a um reparo qualquer. O meu encantamento crescia. Havia o começo. Dentro de mim era óbvio aquele crepitar que só sucede nos melhores dias e muito raramente. Cá dentro o primeiro revolver do que dormita há tanto tempo. A perder-me nos seus detalhes, da roupa que trazia posta, do colar azul que exibia no pescoço. O casal de amigos, juntos, num beijo de meiguice. Baixámos os olhos, os dois ao mesmo tempo, o som de lábios com lábios, que não eram os nossos mas que eu queria que fossem. Eu a sorver-lhe uma voz muito ténue que me obrigava a chegar mais perto, aqueles lábios mais perto, aquela voz dela sem se deter, a contar histórias, histórias da vida que ela vivia em Londres. Estou condenado, pensei. Londres. Estou salvo, pensei. Londres, Inglaterra, longe. O freio da distância. Mas ela continuava. Estávamos os três a olhá-la, a ver aqueles dentes brancos gastarem lentamente os lábios de adolescente num rosto de mulher, a vê-la contar mais histórias, os seus cabelos escorridos, finos, revoltos. Nós os três à espera dela quando se punha a divagar, e aquela voz tão frágil, de timidez, de perda, sei lá, uma voz do fundo de qualquer coisa que quer dizer tantas coisas. E seguiu, porque nos escutava atentos, continuou. Naquele tempo todas as pessoas atrás de mim eram conversas surdas porque eu só a ouvia. A luz humilde que pendia sobre nós era já a noite do céu lá fora porque éramos nós os quatro e as palavras e o bule de chá vazio, com restos de ervas no coador de metal. No jorro de palavras ouvi «namorado». Ouvi, impaciente, «o meu namorado que está em Londres». E depois não escutei mais nada. Nem as vozes dos outros, nem as vozes dos que passavam na rua, nem a música, nem o som da minha perna inquieta. Depois deixei de ouvir todos os outros sons e só quis ver as suas cores (Porque os sons também têm cores). Contemplei o sorriso dela, muito vívido. A sala iluminou-se mas o céu lá fora, que era uma noite escura, caiu sobre mim. Quando voltei o rosto a apalpar as horas estavam a deixar-me à porta de casa e ela já me dizia adeus com os dedos colados no vidro do carro. Eram rios de leite, escorrendo no vidro turvo de tanta luminosidade.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Um longo Domingo


É assim que deve acontecer. Quando o filme se escapa da tela branca, se espalha pelas cadeiras cada vez mais vazias e se encosta a nós, pedindo abrigo. A querer ampliar o seu espaço, a querer prolongar-se como os humanos se querem prolongar ao longo da vida. Quando o filme não padece na oclusão das imagens nem no acender das luzes, como se as imagens, recentemente fundidas em nós, também quisessem percorrer o mesmo caminho que o nosso até à rua, descessem as escadas do metro e vissem o átrio completo de luz e despojado de gente, e também espreitassem o negro do túnel e o metal oleado dos carris, tal como nós, aguardando a golfada de ar quente, que antecipa a fereza da carruagem; como se as personagens e cada uma das suas frases exigissem outra dimensão, aparentadas aos nossos próprios passos na rua fria e muda; é quando os pormenores da história se expelem como estilhaços para fora do rectângulo branco à nossa frente e parecem ganhar a forma de outra companhia, de outra presença, que querem para sempre, unirem-se à nossa voz, aos nossos gestos, aos nossos desejos.
Era sempre assim que devia acontecer. Um filme a querer perpetuar-se em nós, uma sucessão de imagens e vozes e lugares que se arremessam ao nosso caminho e não se desviam, não se querem desviar. Não querem partir sem se certificarem que o nosso emudecimento momentâneo é de espanto, é de encantamento, é de reconhecimento.
É de querer viver muito.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O pacto da eternidade


Quero lembrar-me: a porta da sala a abrir-se, o meu avô sentado numa poltrona vermelha, a balbuciar injúrias inofensivas para dentro da televisão, aos homens de gravata e de discursos eloquentes. Quero que a lembrança se afirme na minha pele e me conte: a porta que se abre completamente e se esbate contra a parede, o meu corpo frugal desliza, esconde-se, monitoriza com redobrada vigilância os gestos muito lentos do meu avô. Na sua face uma brusquidão. Nos seus olhos a fluência das imagens, das notícias. Encosto-me atrás da estante; espreito, ouço a sua voz esvair-se para dentro do ecrã, vejo nos seus óculos uma revolta, vejo esse tumulto coado mas não me assusto, sinto a sua indignação mas não reajo. Espreito, através dos livros de Mao Tse-Tung, através dos livros de Álvaro Cunhal, através das molduras empoeiradas. Espio-lhe o corpo embutido no couro escarlate, a barriga debaixo do colete verde e o boné, abandonado na sua cabeça, como albergue evidente da calvície. Quero recordar-me, quero muito recordar-me: então, ele, que agora atira gargalhadas ao ar e com elas faz estremecer os móveis escuros, diz «vem cá, rapaz», entre a pausa das vozes magnânimas vindas da caixa de luz diz «senta-te aqui, pega nesse banco»; é uma indução em jeito manso, é uma súplica embargada pela corrente alegre da boa disposição.
O meu avô, enfiado sem pressa nenhuma naquela poltrona majestática, em frente ao televisor. Eu sentado num banco de madeira, ao lado dele, imóvel, com as mãos entrelaçadas no colo, aguardando um qualquer gesto, um qualquer indício de movimento, que me faça saltar daquela pose de mimo. Eu e o meu avô, observando as notícias que se colam ao rosto como lenços de cetim e salpicam as paredes da sala, atrás de nós. Agora lembro-me: numa faísca de silêncio, o meu avô levanta o braço. Era um meneio feito de tempo, feito de memórias, assente na dignidade dos anos e na esperança sempre viva desses anos. Aquele braço no ar a levantar com brio a mão, emaranhada em todos os Invernos e todos os Outonos. Lembro-me, quase sem querer: aqueles dedos como labirintos esponjosos de uma existência sobrevivente, bordejada pela inconstância da vida, como os próprios comentários vindos da rua, ufanos pecadilhos da duração humana. Lembrar-me, pegar nas memórias dessas mãos que cinzelavam perfeitamente as palavras, e a demora entre as palavras, entreter-me, nestes dias do recomeço, a olhar os rios de sombra, a escutar-lhes a vontade férrea de serem muito mais que linguagem e indicações.
Desfaleço. Quando fecho os olhos e me imagino ainda pequeno, a reter no corpo as vibrações de gente maior que a minha voz. Desvaneço e sigo o torcer do tempo em busca da eternidade.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Recomeço

(ou a história de uma interrupção longa demais ou a tentativa de absolvição para algo indesculpável)

Ainda que os leitores assíduos deste blog não sejam mais que dois – numa hipótese mais optimista talvez três – sinto que, se não largasse aqui uma tentativa de explicação para este hiato temporal desde a última publicação, estaria a ser evidente demais no meu desleixo.
O que aconteceu foi o seguinte: num dia de Dezembro lembrei-me de fazer uma tosta de queijo e fiambre. É certo que o clima ainda estava longe da aspereza glacial que hoje é motivo de conversa em cada esquina desta cidade. Mas deu-me para lanchar naquele dia, mal sabendo no que me metia. Um dos milhares de actos quotidianos que, à partida, são do mais fútil e inócuo que existe. E por ser assim, os gestos que se fazem aquando destas tarefas rotineiras são tão automáticos que nem pensamos neles. Gestos como o de rodar uma maçaneta ou o de enfiar dois dedos na asa da chávena e levá-la à boca são imediatamente arrumados num desvão do cérebro até que algum psiquiatra necessite de fazer uma regressão através da hipnose e descubra que há algo dentro de nós que não está muito bem nivelado. Abrir a tostadeira, meter lá dentro o pão, fechar a tostadeira, fazer outras coisas mais importantes, entretanto. Parece simples, parece brincadeira de crianças, ou de bebés até. Mas, não são assim tão poucas as vezes que destas funções mundanas resultam graves incidentes. Um curto-circuito, por exemplo. Não foi mais sério porque o quadro da luz disparou e a coisa morreu ali. No momento imediato pensei: «tenho demasiados aparelhos ligados. Desligo o aquecedor e a tosta continuará o seu caminho.» Assim fiz. Quando voltei a ligar o quadro a luz voltou a desligar-se. Foi quando notei que, afinal, não tinha apenas uma tosta no menu. Uma secção do fio de alimentação à corrente eléctrica estava também a ser tostado. Obviamente, seguro que daquele meneio tão habitual somente resultaria o estancar da fome (ou gula) nem reparei que o cabo, meio enovelado por falta de arrumação competente, tinha ficado trilhado e derretia com o mesmo compasso do queijo.
Pois, mas que tem isto a ver com o «silêncio» abrupto do weblog? Toda a gente sabe que os produtos informáticos são hiper-sensíveis. Todos os que lidam diariamente com computadores (como eu) deviam saber que existem umas coisas que se chamam UPS, que protegem os aparelhos informáticos, precisamente contra os atentados lancinantes da rede eléctrica. Caros amigos: eu não tinha nenhum tipo de segurança, e, azar dos azares, paguei – e ainda estou a pagar – bem caro por isso. A motherboard do computador torrou, tal como a tosta e tal como o fio de alimentação à corrente. Acresce a isto tudo o facto determinante de ter comprado a peça (e o resto dos componentes) no Porto, numa daquelas betesgas de informática, erigidas num dos manhosos Centros Comerciais da zona mais decadente de Gaia. Tudo com o objectivo sôfrego de conseguir arrepanhar uma ou duas centenas de euros. E acontece-me isto, que não sou propriamente dado a economias quando chega a altura de investir em informática. Detesto lugares-comuns mas este tem que ser aqui escarrapachado para ver se aprendo: o barato sai caro.
Refeito do desgosto, levantada a cabeça, dissecado e depois sarado o trauma, tratei de levar o acessório à loja na expectativa de a ter reparada ou substituída brevemente. Meteu-se o Natal, meteu-se o final de Ano e a seguir, um tempo em que é costume haver no economato português uma «actividade» chamada balanço. Este período «transitório» costuma durar uns dias, uma semana, vá lá. Hoje, que já passaram duas, contabilizei, até agora, dois pesadelos cujas particularidades agora não me recordo mas, na essência, tinham a ver com falências de lojas de informática e grandes espaços despojados de qualquer tipo de móveis, secretárias ou computadores. Lembro-me de acordar a meio do sonho, ainda com o corpo trémulo e os olhos obstruídos pelas lágrimas, a gritar «não me levem a motherboard, por favor. Voltem.» Portanto, aguardo notícias.
Se escrevo estas palavras e as publico agora é porque uma alma altruísta me emprestou um computador. Pessoas insistiram para que fosse a um cibercafé ou que ficasse até mais tarde no emprego e escrevesse lá, que permanecesse indiferente ao meio ambiente, que ignorasse as conversas estrídulas das pessoas e que não lhes ligasse nenhuma quando espreitassem ou viessem perguntar «o que escreves?», que fingisse não sentir a luz cortante e espasmódica no rosto, que, no fundo, abdicasse do conforto de casa, que tanto tempo levou a compor ao meu gosto. Afinal, não é isso que fazem os grandes escritores, perguntavam as pessoas, algo desapontadas. Pois, mas eu não sou um grande escritor e essas pessoas foram instantaneamente recambiadas para o fundo da lista de contactos (é verdade, a minha lista de contactos tem um fundo), à conta do temperamento muito excêntrico e muito susceptível do autor desta história.
E agora que o número de leitores deste weblog se reduziu dramaticamente não me resta outra alternativa senão começar de novo o testemunho e o relato destes dias cada vez mais desordenados.