terça-feira, maio 17, 2005

A sinuosidade do dia seguinte


Finalmente. Quero que os dias me castiguem, quero que as lembranças desses dias me ceguem e me façam largar a memória. Como as marés, venho desaguar às tardes de Maio sem noção do tempo. Caminho e destruo-me. Às vezes, acompanho os meus pés descalços na areia com pensamentos embebidos na brisa da tarde. Às vezes, quando me quero aproximar, há distâncias e há incómodos. Um intervalo muito fundo, de longitude incerta. Finalmente, deixo abrir um pedaço na noite e assisto à dança da claridade em cima da minha pele. Dissipo algumas palavras. Sem querer dizer nada, sem querer alcançar nada, sem desejar nada. Quando a noite realça a indiferença do futuro. Quando a noite expõe a sinuosidade do dia seguinte. Quando me quero esquecer, quando pego na tesoura a recortar um segundo para delapidar um minuto. A esperança dum caminho de folhas secas, à espera do vento crespo da montanha.
Tenho um punhado de cabelos brancos entre os dedos.
Vejo no asfalto um pingo de chuva que se desfaz nele e o enegrece.
Encosto a cabeça na cadeira, relaxo o corpo até o desapertar de mim, estico o braço ao longo da janela em andamento, observo o mar e a espuma branca na areia. Vejo o céu.
Ando depressa, atravesso a rua, do canto do olho sinto os carros quietos, há outros corpos que passam e que se cruzam comigo, ando a perseguir o conforto e a ordem, os sonhos, os sonhos a fugirem sempre que acordo, sigo agregado a estes pensamentos, ao anseio de os ver, um dia, pintados em tinta azul num muro disposto a ser demolido.
Por cima de mim, árvores.
Em cima de mim, um céu de árvores, limpo.
Aqui, nesta terra demorada, os corpos das mulheres são lembranças. Nesta luminosidade, resta em cada corpo martirizado, a ofensa do abandono. Lembro-me.

Este céu, este mal


Na cama vejo além do tecto, vejo o céu. Sou ridícula. Nestas roupas afoitas sou uma mulher desmembrada. Quero, não quero, tenho medo, tenho medo deste céu sujo e que ele traga os teus olhos perto dos meus olhos. Deitada nesta cama só vejo a tensão do mundo espalhada sobre a casa. O telefone. Num impulso, levanto-me. O céu negro. O céu espesso e negro. Atendo, a minha voz é uma gota desse céu. Teresa? Ainda aí estás? Anda lá. A Joana. A festa. O céu que desaba. As nuvens são monstros e gritos que fazem vibrar esta cama, estas paredes, eu. O que fazes ainda aí? Dou-te quinze minutos. Vá lá. Nem imaginas quem cá está. Ele. Tu que eu quero, que eu não quero, não posso. A Joana quase a sair de dentro do telefone. Vem, vem, vem.
Quando desço as escadas não ouço o céu. Quando abro a porta do prédio não tenho sobre mim o espanto dos outros. Há pessoas que passam. Há conversas ténues que passam. Espero o táxi na borda do lancil. O céu embrulhado, vigilante. Não vás. O céu rude, os olhos do céu negros. Os automóveis passam; entro no táxi. Boa noite. Para a rua das Acácias, por favor. O senhor taxista, a música que irrompe do rádio, está um dia pesado hoje, não acha? Solto as palavras que posso. O céu enorme e negro. Enrolo palavras nas palavras do senhor taxista. Tenho os olhos nas manchas da cidade. A velocidade do automóvel. A música e depois as notícias e depois manchas verdes no vidro. Depois o céu aberto e escuro, muito perto. O senhor taxista empolgado com qualquer coisa, as novidades do mundo. Os olhos dele no espelho retrovisor. Os meus olhos nos dele muitas vezes. O céu como uma manta negra. O brilho do espelho retrovisor. Asfixio e ponho os olhos na estrada, nas árvores, nas casas que fogem. Tenho no peito os olhos do senhor taxista. O céu brutal, o céu com uma voz alongada, o céu com uma voz temerosa. Os olhos do senhor taxista em mim. O abrupto de todas as cores misturadas em todos os gritos. A convulsão do metal do táxi. Um corpo que é violentado. O céu como uma prensa. O céu como uma piscina de sangue, de metal retorcido e pedaços de roupa.
Em cima de mim já não existe céu. Há uma névoa e aromas negros dentro de mim. Tenho um homem deitado no meu colo. Tenho o sangue do senhor José nos meus braços. A convulsão do mundo. Eu sentada. Eu como uma estátua, olho o senhor José. Tem os olhos abertos, e neles o medo. Coloco a minha mão na sua testa e o céu está dentro de mim. Quando os olhos do senhor José se fecham é o céu que se fecha em mim. Eu sou a paz que é feita de sangue.