sábado, novembro 13, 2004

Ondas de luz


Nestes caracóis existe luz. São negros, tal como a luz também é negra quando é pura. Dentro deste enleado de luz negra existem muitas ideias e muita sensibilidade e muita criatividade. Ontem, no momento exacto em que a noite se pôs, eu quis deixar lá os meus dedos. Vê-los desaparecer no interior dessa luz, estreitá-los até que deixassem de ser meus. A noite avançava, álgida, os meus dedos e as minhas mãos sempre inquietos, tentavam desprender-se do meu corpo, queriam fundear-se naquela negrura reluzente. Os meus dedos desejavam ser as ondas compactas e vigorosas, escuras, cintilantes, enigmáticas, que os meus olhos viam e não acreditavam, que o meu olfacto sentia mas não podia acreditar.
Quando a noite cresceu e se fizeram nela instantes de caos, por momentos, que eu julgava terem sido dias, deixei de ver essas ondulações. Buscava na rua, observava as janelas das casas, vigiava o céu e a película de gelo que o segurava. Não as sentia próximas. A luz longe de mim, a pureza do negro muito longe de mim. Havia, naquela altura, muita gente que dizia coisas, havia o meu rosto a olhar para os meus dedos; eu era um labirinto de pensamentos.
A noite como um regaço morno a atender as minhas demandas, os meus desejos. Eu precisava que uma massa enorme de ondas negras me encontrasse. Ao meu lado, esta escultura de geometria circular. Ao meu lado, infinitas linhas negras de luminosidade como destino natural dos dedos de uma mão fria.

terça-feira, novembro 09, 2004

Uma forma de loucura


E ele, quando acabou de descer os degraus e assomar à rua, pensou: o início das coisas. Não me habituo ao que te quero contar, às cartas inacabadas, folhas em cima da mesa ao relento, propícia à aragem que passa, e às pausas a observar o que dizes, o que se retira desses lábios em formato mais pequeno e mais perfeito que o regular, o que dizes a vermos o mar. Abriu o guarda-chuva, deu dois passos e deteve os olhos na quadrícula riscada no passeio. Pensou: esplanada, tarde quente, tarde a aquecer, mentirosa, tarde com mesas à volta das pessoas e não o contrário, as tardes de quando se intenta a caminhada em todas as direcções possíveis. Depois recomeçou a planície dos passos seguros no cimento do passeio. Na brecha que a pele mostrava em minúsculos movimentos da sua mão, sentia o letargo da chuva que caía, agora intensa, no topo do guarda-chuva. Desviou-o um pouco. Olhou o céu e as folhas, entre os seus olhos e esse céu, e voltou a pensar: o princípio da consciência como moeda de troca, ver passar a tarde, limpar os olhos, ver as pessoas desfocadas, a timidez e o desconcerto da cegueira breve, a apática maneira de vestir, a maneira de compor os membros ao longo da caminhada, do recomeço da noite, do dia, de nós.
Ao dobrar a esquina, desvia-se e vê: gancho de plástico castanho, cabelos grisalhos emaranhados, pertinazes, intolerantes, a sua palestra surda proposta em segredo aos amantes do Mal. Continua a caminhar, a sua marcha como um carimbo grosso e o cimento escuro da água como um rolo de papel, desdobrado imaculadamente ao infinito da rua. Pensa e deseja, pensa sem querer desejar: tarde quente, tarde antes do Verão, antes de eu chegar a tempo de palmilhar uma bolsa feita de remendos e encontrar lá dentro a minha quietude vestida de negro. Ele, com a mão a segurar a força do céu, prossegue no seu caminho, entre montras e outras pessoas que também seguram com algum afinco a vara do guarda-chuva. De vez em quando, o vento e a chuva desviam as pessoas. O vento move a chuva de encontro ao vidro das montras. Ele detém-se a ver as gotas que escorrem encarneiradas no vidro. Defronte do seu vulto algo fosco observa outros humanos e a sua forma de gritar.
O homem entra no café, sem pressa. Sacode o guarda-chuva e coloca-o nas costas de uma cadeira. O homem, ainda com a gabardina vestida, senta-se. Não se sacode, não baixa os olhos, não se esconde. Vê: os dedos de alguém a bater ritmadamente em cima de uma mesa, uma chávena de café utilizada que balança e estremece, a colher desmaiada dentro dela, ciliciando os ouvidos de quem está perto, as mãos de outra pessoa que manuseiam um livro acabado de comprar, o corpo magro do empregado, segurando uma travessa de metal, e as luzes algo trémulas, em cima dele, viscosas indecisas, entre a alvura de um relâmpago e o acervo ténue de uma vela. Então, o homem salta para cima da cadeira como um lobo para cima de uma carcaça, põe as mãos em forma de concha a tapar a boca, entreabre-as e diz:
«Tenho os pés gelados. Tenho de adormecer e não quero. Tenho os dedos dos pés dormentes do frio, de estarem inertes, do frio a ser muito escuro. Quero deitar a cabeça na almofada e lembrar-me que dias assim são poucos. Quero adormecer sem ser de noite, sem ser de dia. O pardo da irracionalidade. Um quarto de hora até aquecer a alma com palavras jorradas aqui. Esta sala embrutecida como uma canção poeirenta, ver além da esperança, ver como sair deste sítio, ver beijos, ver sonhos, ver-me dentro de um sonho a beijar alguém. O que é tocar a tua pele? O que são beijos quando pende do céu um gelo antigo? Eu aqui, assim, sem nada que me encante, enfraqueço. E isso pode ser o começo.»
O emudecimento que se pôs era artificial. Havia pernas que mexiam, havia o resfolegar dos tecidos de encontro a outros tecidos, havia o vapor muito lento da máquina de café, haviam rostos parados, numa delonga quase cinematográfica. Cada rosto emboscado, à espera do recomeço ou do fim. O homem despe a gabardina. Pingos de água. Uma voz de meio-tom no fundo da sala que não chega nascer porque, entretanto, ele dá mais um salto e assenta os dois pés em cima da mesa. Argolas de toada rouca atingem esses rostos estagnados. O homem pega num livro e diz o nome do homem que está no livro: Paulo José Miranda. As pernas do homem afastam-se e flectem ligeiramente. O homem solta da sua boca as letras pretas do nome do livro: Vício. Há quem tussa e se encolha atrás de alguém. Há quem queira perguntar muitas coisas, há quem pense “desgraça”, há quem pense “morte”, há pensamentos que dizem “chega”.
Então as gentes separadas pelo medo e pela incredulidade vêem o homem encher o peito, olham as veias do seu pescoço a insuflarem e sentem nos seus rostos o hálito de uma voz agonizante a sair daquele tronco de carne afogueado. Diz: «Mas é precisamente isto que a leitura encerra em si mesma: a longinquidade do quotidiano insuportável. Não do mundo, apenas dos dias. Para carregar um dia, que pesa mais do que o mundo inteiro, mais do que séculos de história, é preciso ler. É uma perdição, sem dúvida, mas não há outro modo de não nos perdermos. E terrível é a vida quando, em completo desencontro com os dias, também não conseguimos ler; ou escrever, que é uma outra forma de ler, mais privada, mais egoísta, pois não há partilha ou apenas uma ilusão de partilha.»

sábado, outubro 23, 2004

Preciosidades


Quando a ponta do meu dedo indicador percorre a fileira de discos e escolhe um, o puxa à luz e o põe no leitor de CDs. Nestas ocasiões, em que as sextas-feiras descarregam a volatilidade da semana em jeito voraz, sabe muito bem pegar num disco destes e deixar a sua entoação pendurada no ar sobrante da casa. É muito mais que um acto isolado e rotineiro. Quando a voz volúvel de Mark Kozelek não se intimida, não segue regras, não aceita nenhum impedimento e segue quase febril, ao acaso dos meus gestos e da minha satisfação táctil. Quando um disco destes se ajusta perfeitamente ao termo da semana e inaugura outras passagens. Fazer deste instante uma festa. Repetir e misturar em violência as letras e a música, enquanto os segundos passam, enquanto as horas passam. Depois, algo aturdido pelo som hipnótico do piano, renovar a melodia muitas vezes nos minutos seguintes, deixá-la esmaecer, arremessá-la contra o silêncio e fazer dessa colisão uma raridade. Guardá-la dentro das mãos, e logo a seguir, sem fazer caso do meu próprio juízo, anunciar oficialmente a vinda do fim-de-semana.

«Tell me and take your time
Set free this soul of mine
Freeze frame this sedate moment
Lie me in your quiet ground

I understand your
Tired eyes for these
Tired homes and tired trees
I see the pain in those
Brown eyes
Fires burn in Autumm skies»

(Brown eyes, Red House Painters)

quinta-feira, outubro 21, 2004

Respirar fundo


Antecipar-me. Abrir a porta de casa, receber a frescura inaugural da manhã, acondicionar nos ombros a penumbra, o início do dia. O movimento oblíquo e ainda narcotizado da cidade, das pessoas, dos automóveis, vermelho, verde, percorrer a avenida da liberdade, ondear o marquês, subir as amoreiras. Recolher nos olhos, ainda apertados de sono, a proclamação de um dia chuvoso. Deslizar na A5, palmilhar a verdura de monsanto, observar o sono dentro dos carros que me ultrapassam, inventar na minha pele e nos meus gestos trôpegos a actividade. Tirar uma mão do volante, esfregar o rosto, oito menos um quarto em números alaranjados, descer a auto-estrada absorto na nebulosidade pensativa das tarefas do dia, reduzir a velocidade, curvar, perder a vista ao asfalto, fender o vale do jamor, estacionar o carro e pegar num segundo, em vinte segundos e oferecer-lhes a ondulação das árvores, o seu fôlego no regresso do encarvoado da madrugada.
Fintar o dia, amplificá-lo, ter toda a esperança num bolso do casaco e mostrá-la a quem passa, dizer bom dia, entrar no balneário, despir o casaco, esvaziar os bolsos. Calçar os chinelos, percorrer os corredores em direcção à piscina, oito horas, um arrepio, o meu reflexo no espelho que perfaz uma parede inteira. A piscina. As luzes artificiais amarrotadas na superfície da água. Verter os meus passos à borda de água. Mexer nela, onomatopeias subtis de prazer. Mergulho, mergulho, deixo-me resvalar até ao fundo, a linguagem voluptuosa da água sobre mim, um corpo sobre o meu corpo, o quase silêncio, a fuga aparatosa da realidade, da sua consistência, o líquido cerúleo num bailado eterno. Vir à tona, respirar fundo, mergulhar. E a serenidade a fortalecer-me todo por dentro, como essas coisas doces que me dizes ao ouvido. Respirar fundo, mergulhar.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Portas que se abrem


Não foram duas vezes. Talvez tenham sido mais que três, até. Não sei. Mas é com agrado que noto uma certa empatia entre o meu pensar e o que a Catarina escreve, acertadamente, no seu http://catarinaemfuga.blogspot.com. Acreditem, não a conheço pessoalmente. Acreditem, ninguém me pressionou a escrever estes aplausos. Portanto, o que me desviou dos comentários ao desarranjo das coisas e me impulsionou até esta evidente e gratuita oferenda de publicidade ao blog da Catarina? Uns dirão: «David, estás em falta com alguém e decidiste realizar uma boa acção para compensar actos indevidos». Outros, ainda num tom cordial mas já com pensamentos desviantes, opinarão: «É óbvio que o rapaz arquitecta o suicídio do seu próprio blog e quer encontrar outro que o possa perpetuar e melhorar em ideias e pensamentos». Os mais insolentes, quem sabe em estado exageradamente meditabundo, calçarão os seus melhores sapatos e sairão à rua, de megafone em punho, e gritarão: «Atenção, atenção! Há um louco na net, que perdeu a cabeça e, descaradamente, se pôs a publicitar um blog de outrem. Muito cuidado com ele.»
A verdade: para mim, será sempre empolgante e motivo de regozijo receber a sensibilidade dos outros. Por isso, obrigado Catarina, obrigado Nuno
http://www.aformadojazz.blogspot.com, obrigado Vânia http://palco-da-vida.blogspot.com, e os outros, cuja criatividade e vontade de partilha me inspiram aos melhores actos que a vida pode conter.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Músicas #02


E mais isto. São as sonoridades correntes cá do prédio, que desatam a espalhar o entusiasmo e a fabricar partículas de boa disposição. Os neutrinos da alma.

Músicas #01


Actualmente, cá em casa, escuta-se isto.

O jantar


Estas são as provas materiais que demonstram, sem margem para erros, a minha perdição. Digo mais: estas fotografias provam a minha vontade em continuar no cerne desta condição de maldito. A minha alma, quando se apercebe das maledicências que solto, aqui e ali, sem pudor nenhum, arrepende-se. Eu não. Eu sigo em frente, em busca de tais tesouros providenciais que ajudem à minha insanidade. Como verificas, há algum torpor e obscuridade nas evidências. Agora, que estás no conforto de um sofá ou de uma cadeira, e lês estas palavras, parece evidente que houve uma certa facilidade na obtenção das mesmas. Pois parece, mas não foi, caro amigo.
Naquele Sábado as horas passavam. Enquanto entrevia o atraso das divas fui dando achego ao preparo do jantar. Em lume muito brando mexia a colher de pau e pensava nestes meses todos passados ao abrigo da minha voz e de pouco mais. O tacho com arroz fumegava. Sem pressa nenhuma, assistia à subida do vapor que se perdia no abismo da chaminé. Pensava. Dava à colher e pensava. Lembrava-me de todos os Sábados e todas as sextas de todos os meses que sucederam e em que apenas esperava dois ou três copos de vinho, umas frases benditas e o arrojar do corpo à cama, de consciência limpa e devoluta. Assim eram as memórias do Inverno, do rugir da solidão, do hábito à solidão e do efeito viciante de bem-estar quando nela me banho. Neste Sábado, enquanto as meninas confundiam as nove com as nove e meia, nem me dei conta da invasão pacífica prestes a acontecer, nem da falta que momentos como este me fazem. No deserto e nos costumes de rapaz despovoado há mais a acontecer do que se imagina. Pensar, não pensar, deixar de pensar, deixar de ouvir, o silêncio, uma multidão de vozes, por fim, a paz. Depois de muito tempo a paz. Deixar de desejar, deixar de sonhar, deixar de fora a esperança. Deixar de ter medo. Na lentidão da noite e nesta viagem de pensamentos incertos, o jantar predispôs-se, mesmo à medida do toque da campainha.
Uma mulher, por mais vulgar que seja, encerra sempre um mistério. Exponencialmente, mulheres encantadoras como a Sara, a Cris e a Cláudia (que aparecem na fotografia) encerram os mais gulosos mistérios. Desde o primeiro abraço, enquanto se livram do casaco e do frio desajeitado de Maio, ao beijo que o meu rosto nunca se cansa de repetir, mulheres assim são os maiores acenos de bonança que um homem pode ter. De nada serve observar, no reflexo da janela, a minha burlesca figura, segurando uma colher de pau e pensar que ainda estou sozinho, como nas outras noites da semana. Elas tomam conta do espaço, do ar meio frouxo desse espaço e convertem-no num pequeno oásis. Se não for pelos gestos, se não for pela graciosidade, é, certamente, pelo tom de voz ou pela maneira enigmática – lá está o factor mistério outra vez – com que argumentam a sua presença. Tão bem quanto eu sabes ao que me refiro.
Entretanto, posta a mesa e servido o vinho, a naturalidade do evento começa a arrulhar os sentidos. O vermelho do vinho e o vermelho negro do sangue quente. É conhecida a influência do néctar de Baco nos corpos mortais. Normalmente, é a luz desbotada, são frases sem nexo e sem verdade, são vozes transformadas em gritos e são silêncios a amortecerem a conversa. Mas estas presenças femininas não pertencem ao comum das gentes. Se eu te disse, há pouco «encantadoras» devia ter escrito, a vermelho e em letras grandes, «mulheres inebriantes, encantadoras e inteligentes». Da singularidade que estes encontros produzem conservo as frases agrilhoadas como serpentinas no infinito da sombra, retenho os momentos de humor que apagam da pele todos os resquícios de aflição, surgem, em boa verdade, as partículas mais elementares de vida feliz.
E este céu que nunca mais se ajeita.

domingo, outubro 10, 2004

Diários


De vez em quando, algo nos cerca, regateando subtilmente a nossa atenção. Às vezes, mesmo quando parecemos envenenados e absortos na estridente vulgaridade deste nosso quotidiano, há algo que nos cumprimenta de forma afável, se apresenta e nos conquista para sempre. Esses momentos, esses impactos vigorosos que ficam eternamente registados na nossa vida, na nossa alma, e influenciam a nossa forma de ver o mundo, felizmente, se prestarmos atenção, ainda não são tão raros assim. É a música, é a pintura, é uma conversa, é um livro, são muitos livros, é um beijo, são muitos beijos, é uma boa refeição, um bom vinho, é uma fracção do silêncio. É um filme, como este http://www.motorcyclediariesmovie.com. E são todas as demonstrações de humanidade que habitam nele.

quarta-feira, outubro 06, 2004

A sombra do vento



Por favor, leiam este livro.

segunda-feira, outubro 04, 2004

À solta


Como as marés, venho desaguar às tardes de Maio sem noção do tempo. Caminho e destruo-me. Às vezes, acompanho os meus pés descalços na areia com pensamentos embebidos na brisa da tarde.
Aqui, nesta terra demorada, os corpos das mulheres são lembranças. Nesta luminosidade, resta em cada corpo martirizado, a ofensa do abandono. Lembro-me.

A carta


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural, e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem-haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saia da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e vazios, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros murmuravam. Bradaram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.

sexta-feira, outubro 01, 2004

E se não houver nada?


O que há a fazer quando não existe, realmente, nada para contar? Como sobrevivem as cartas, os encontros nos cafés, as reuniões entre amigos à mesa de restaurantes, os passeios de mãos dadas que roçam o viço dos jardins? Vivem de quê, os diálogos e os monólogos? Pergunto eu, como se consegue então suportar a ausência absoluta, firme, cientificamente comprovada, de factos novos na vida das pessoas? Como é possível tal coisa? Enquanto caminhava rumo ao meu covil, pensei numa escrita mais ou menos original, a ser especialmente elaborada como resposta ao teu último contacto. Afinal, eu é que me desleixei, eu é que olhei para o lado, eu é que mandriei, nesta história de regularidade escriturária. Vi o meu rosto transgressor em cada reflexo. Confesso a tormenta. Aconteceu-me até, vê lá tu, permanecer largos fragmentos do dia a pensar na remota possibilidade de, um dia – o mais inesperado de todos – assistir ao colapso estrondoso da nossa amizade. Às vezes dou por mim a imaginar que as relações têm garantia para uma vida, pelo menos para uma vida. E mesmo se, por instantes, somos enrolados no engodo do Amor ou da Felicidade ou das milhentas tarefas que a Vida nos proporciona e a deixamos à deriva, a Amizade, pensamos sempre que tem automatismos próprios e que não precisa de um retoque ocasional nem de constante atenção. Eu sei que nem a distância geográfica pode justificar a queda nesta esponjosa preguiça. Afinal gosto ou não gosto? Temos ou não temos saudades das pessoas? Não basta sabermos que está tudo bem, não é suficiente sentirmo-nos confiantes e «seguros» que aquilo ali à nossa frente é uma relação protegida por laços de ferro e que nunca irá ser destruída. E, no entanto, quantas vezes catapultamos a mente até à planície acessível do «está tudo bem, ela está bem, amanhã escrevo-lhe, ela deve andar ocupada com as suas coisas»? Mas o nosso caso é diferente, ripostas tu. Nós temos a certeza, nós seremos sempre amigos, dizes, digo, dizem.
Regresso às indagações, para que a linha mestra desta divagação não se diminua: como sobrevivem as gentes quando não acontece nada? O que é uma vida sem notícias, o que são os dias sem a algazarra e a gritaria de uma suculenta novidade, como pode fruir com a mesma sobriedade o espírito do Homem quando, verdadeiramente, nada se passa que mereça uma mensagem escrita, quanto mais uma carta? Se calhar, perante a vivência na capital cultural europeia, vai parecer-te extravagante este desassossego de aldeão. Se calhar, traduzes esta carta a um francês teu amigo ou teu amante (ou o que seja) e os dois vão até à varanda atirar à rua duas, três ou até mais gargalhadas. Assim, como dois alienados, tombando o corpo sobre o varandim, rindo, gozando, troçando destas palavras, de mim. Não precisas dizer que não, que estou parvo por te afrentar com estas dúvidas, estas fantasias. Não são dúvidas. São muito menos fantasias, que pensas tu?
Onde é que eu ia? Sim, tentava encontrar uma hipótese que desse conta das questões acima escritas. Não dizes nada? Observas-me nesse tom apalermado, sem saberes o que fazer, que gestos proferir. Até mete impressão, até metes impressão. A tua letargia, o teu riso que agora se transfigura e aparece como vergão, subtilmente, no meio da testa. Impressionante. Pois é, não vejo agora esses dentes, já não noto a mesma desenvoltura, a mesma firmeza e postura de brincadeira. Não me distraias, ouviste? Deixa-me terminar este escrito. Deixa de tagarelar ao meu ouvido, sai de dentro da minha cabeça, de dentro do meu sangue. Comporta-te.

quinta-feira, setembro 30, 2004

A luz da Primavera


Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos. Já nem sei bem que escadas longas eram aquelas, nem sei se fiquei prostrado a olhá-la, enquanto ela adejava um pé atrás do outro em cada degrau. Vou imaginar que naquele céu de Março os meus olhos eram infalíveis e eram a minha esperança de ter na palma da mão um mundo feito só de arestas. Plantado no sopé cinzento das escadas eu acenava, punha o meu melhor sorriso e soletrava Até logo a fingir que ela ouvia. O sol desmanchava-se sobre o aterro de pedra, aquela monumentalidade toda, e nela o meu amor pecaminoso a caminhar para a Faculdade. Um clarão dentro da luz. O seu aceno, dentro do seu corpo torcido, alinhava-se com as minhas sobrancelhas esbugalhadas, que lhe entornavam qualquer coisa, palavras telepáticas «Estou aqui» ou «Vai, não te perco de vista, vai.». Dentro dos dias dourados, aquele momento foi o menos rutilante. Cada vez mais um corpo ligeiro, disforme, a agregar-se sem pudor ao cimento das escadas, cada vez mais eu a ofegar palavras de apelo, de saudade, de intenções predadoras. O meu tempo, diante da pedra e do sol batendo na pedra, tinha terminado.
Defronte destas barras de metal penso: o tempo é sempre mais breve que a eternidade dos homens. Enquanto ponho os meus dedos amplos e sinto neles o ferro inspiro o ar rude da prisão. Nos corredores as pegadas do mal. Nos uniformes a imobilidade do tempo. Nem sei porque recordo, não sei porque insisto na tua lembrança. Já não subsiste em mim o tom morno de Março. Há os meus passos no passadiço de metal, há a minha mão aberta ondulando nas barras de ferro, há a rotina como um monstro debaixo da areia numa praia deserta. Estou preso há mais de trinta anos. Dentro do quotidiano e da aspereza do quotidiano, dentro destas paredes e dentro destas vozes ao longo do dia há noites em que me atrevo sonhar. E hoje, que já nem sei se os meus cabelos estão encanecidos de sobrevivência ou de dor, acordei trôpego a lembrar-me de umas escadas e de letras azuis no cimo de uma fachada com muitas janelas, que diziam Faculdade e diziam, rasgando a calmaria do sol, Faculdade de Ciências. O pior que aqui pode suceder são as lembranças. Pensar que o tempo é mais breve que a eternidade dos homens, e deixar de mastigar, e deixar de querer prantear o uniforme sob um sol mais antigo e contíguo aos muros deste sítio, deste fio de terra. Acordei inchado de terror e de esperança. Não sei porquê. O tempo será mais lento que a eternidade dos homens.
Na bacia da minha cela entornei o meu rosto. Enxaguei trinta anos, procurei com a mão a toalha e dos olhos retirei o teu corpo torcido a meio das escadas, limpei as sobrancelhas e a testa. Com as duas mãos à frente das minhas outras mãos dentro do espelho asseei da memória o teu vestido às flores, a mochila que pendia nas tuas costas. Com o meu rosto malhado e a pingar esse sonho, essa memória, peguei na toalha mofa e abafei o som dos teus sapatos de verniz, crepitando a pedra, escorri da minha pele o teu aceno, à entrada da Faculdade de Ciências. Entrar nesse espaço amplo de descoberta, dizias. E eu pego na lâmina e raspo da minha face essas palavras. Levanto com os dedos esta carne rugosa e expulso do rosto os restos do teu sorriso, bano do meu anoitecer o teu aceno, a tua luz. Outono, Inverno, Verão, Outono, Inverno, Verão.

Melancolia


«Como a solidão, este jardim abandonado anoitece. Guardo derrotas como se guardasse segredos. Anoiteço sobre este jardim. Agora, entre as ruínas, sou igual a estas árvores que morreram no instante em que tudo deixou de fazer sentido. No momento em que partiste, deixei de fazer sentido.» in Antídoto, de José Luís Peixoto
Sabia que, durante a leitura deste livro, encontraria nele fragmentos de mim, estilhaços daquilo que vou sentido, nestes dias estranhamente mornos de Outubro. Já ia lançado ao sono e não resisti. Nestes instantes reconheço a vida com qualidade. Na luz como um lençol fresco e ténue sobre mim, no silêncio que a noite alberga ao fim de um vendaval de muitos sons rudes da cidade durante o dia, nas palavras dos outros quando reflectem o meu pulsar pelas coisas simples. Nestas imperceptíveis coisas eu me levanto, na invisibilidade das fendas na calçada eu fujo ao negro, eu interrompo estes diálogos mudos dentro da minha cabeça, eu imito um sorriso antigo e sou um sorriso como a felicidade memorial. Eu tenho esperança. Eu deixo de esmorecer, eu impeço-me do trago afável da solidão quando vivo estas coisas simples. Estas coisas pequenas, de prazer imperecível, como as mais exuberantes descobertas nos períodos essenciais da nossa existência, como pensar naquilo tudo que me faz mal e não deixar, mesmo assim, de crer num tempo longe deste e melhor que este, e mais feliz que este, e mais completo que este. Nas coisas tão pequenas do quotidiano. Do quotidiano, aparentemente sem esperança nenhuma, se desmascarar e não ser tanto de correria, tanto de diálogos bravos e desconexos dentro da minha cabeça, não ser tantas vezes o letargo daqueles que pensamos estarem mais próximos, de dias inteiros às escuras com um saco negro pelo rosto abaixo, pelo peito abaixo, pelo corpo inteiro abaixo até ser de noite quando o som que chega até mim dizer o contrário. Noite dentro do dia. A bruma dentro da luminosidade. Uma luva preta que sufoca esta pedra branca acabada de sair da espuma do mar.
Esticar as pernas e encostar a cabeça. Decliná-la. A ligeireza da manhã, a cabeça e o corpo entorpecidos pelo cintilo do sol no vidro da carruagem, no rosto, na pele, sob a pele, dentro das veias, dentro do sangue, na velocidade da corrente do sangue. O café amargo doce amargo nos lábios, na língua, sair do escuro e abrir a porta, ver uma árvore no quintal em frente, e ouvir nela pássaros, ver o verde, ver o Outono parecido com a Primavera, ver em todos os dias semelhantes muitas diferenças. Como chegar à estação e cruzar-me com dezenas de pessoas todas iguais e logo a seguir muito diferentes como se existisse dentro delas um ódio muito antigo, olhar em frente e sentir na cara o apego das suas conversas, da sua melancolia, do seu aroma, das suas dúvidas. Estagno perante o vapor das pessoas. Às vezes, fico. Tantas vezes dou um suspiro como que a salvar-me, ou a fazer de conta que há-de estar próxima uma correnteza de pequenos prazeres e que eu possa embarcar nela. E quando colocar os dedos nesse curso o sentido da minha vida será o meu jardim.
«Tenho medo de que não estejas aqui, neste banco negro, ao meu lado, dentro desta escuridão onde também estou. Mas eu sei que estás aqui. Se quisesse podia dar-te a mão. Se quisesse, podia dizer o teu nome. Mas eu não sei se estás aqui. Permaneço. Imóvel. Em silêncio. Cheguei para sempre a este jardim e quero que esta noite negra continue para sempre e que nunca tenha de saber se este rosto, aqui, ao meu lado, dentro da escuridão, és tu ou a imagem de ti nesta memória que está aqui ou que sonha que está aqui.» in Antídoto, de José Luís Peixoto.

Sonhar o imprevisto


Fechar os olhos e deixar Aqua Bassino a tocar. Chegar a casa, fechar os olhos e escutar doses felinas de trompete, assim perto do relaxamento. Chegar do sol em Lisboa. Chegar de dentro da tarde, finalmente primaveril, ouvir as pessoas no jardim, contemplar um cão saltar as sebes com vigor e com saúde, ver que a brisa morrinhenta se esbate na cara e sentir que ela suspira, que eu suspiro há tanto tempo por algo que nunca irá acontecer. Fechar os olhos. Estar no Chiado, descer e subir sozinho o Chiado, sentar-me na esplanada, ler as histórias mais ou menos inesperadas de Clarice Lispector, escutar notas de piano ao invés das vozes das pessoas. Estou no Chiado nesta primeira tarde límpida do ano. Se não observo nada de novo, sinto algo novo. Se tiro os olhos do pequeno livro de capa preta e olho à minha frente não vejo nada novo, mas parece que sinto algo que muda. Algo que envelhece. Como eu nestas horas do desalento e dos monólogos interiores. Gostava de dizer «ai, Lisboa, dá-me cada novo tesouro e cada vez melhor», mas fico-me pelo silêncio, fico no silêncio.
Fechar os olhos, inclinar a cabeça, escutar o enlevo da música de Aqua Bassino. Eu queria dizer tanta coisa. De olhos fechados, a ver as pessoas muito longe, as pessoas mudas quase espectros na minha memória. Serei eu, pergunto. Serei eu perante as pessoas, pergunto.
Passo aos meus ligeiros acasos e transformo-os em grandes acontecimentos. É uma questão de sobrevivência. Então aqui vai: ontem voltei a cruzar-me com ela. No bar terraço do CCB, dividia a atenção entre o rio, a movimentação parcimónia dos barcos no rio e as páginas finais do livro de Philip Roth, quando a vi entrar. O mesmo estilo elegante e negro, o mesmo olhar felídeo, o mesmo sorriso tímido e quase quase libidinoso. Ao seu lado marchava um rapaz. Calças de ganga azul claro, ténis azul florescente, camisa branca com riscas horizontais vermelhas e riscas verticais azuis (ou seria ao contrário?) e, como remate final, não menos importante na concepção visual do homem, um belo e luminoso par de meias brancas. Não sou de julgar os outros pela vestimenta. Mas sempre entendi o vestir como antecâmara à maneira de ser de cada um, aos seus gostos, à sua sensibilidade. O vestir como curta-metragem do ser. E esta descrição serve apenas o propósito, honesto e simples, de te fazer entender o meu choque. Então não havia de se colar ao meu corpo o abalo depois de apreciar tão extravagante diferença de estilos entre os dois? O passear elegante e cheio de subtileza dela lado a lado com o ressonante marchar do namorado. No primeiro e sempre desembaraçado ímpeto ri-me, claro que me ri. Tal como gracejei todo por dentro quando, do canto do olho, o vi, com aquele corpo grosso e liso de qualquer subtileza, beijá-la e agarrá-la como quem agarra e beija um tesouro mas não sabe que é um tesouro. Não foi ciúme embora também não negue que desejei estar no lugar dele. Aliás, mesmo sem o conhecer, digo já que sou eu mais merecedor do lugar do que ele. Mas estas posições privilegiadas de amante de mulher encantadora não se merecem, conquistam-se. Ele conquistou-a e eu não. A única coisa que alcancei foi o meu nome e o meu rosto na memória dela. Sim, é verdade, ela ainda se recorda de mim. Continuei a minha leitura, em passos largos para o grande final de «A mancha humana». A minha mente saiu do bar terraço e dos ombros descobertos dela, e cravou-se num lago gelado nos Estados Unidos, na conversa tensa entre dois homens que lá havia. E por saber que tinha nos dedos as últimas páginas de um bom livro, no meu sentir, na minha disposição, no meu olhar brilhou uma certa melancolia. A mesma que sempre me acompanha quando as páginas finais de um bom livro correm mais depressa ainda que a vontade de o terminar. Foi com esse olhar, mesclado de bruma e satisfação (pelo prazer que é ler um livro assim), que ela me abordou, dizendo que me tinha reconhecido há pouco mas só agora, enquanto passava, teve a certeza que era eu. Fez uma observação qualquer sobre os jornais que estavam em cima da mesa e eu sorri. Na curteza do momento, parte de mim ainda estava acocorada, à escuta, na superfície gelada daquele lago, e a outra parte a refazer-se do segundo pasmo da tarde. Ela pareceu-me tímida mas ainda conseguiu dizer que ia trabalhar mais um pouco e eu voltei a sorrir, dizendo-lhe que ia continuar a minha leitura. Até logo, soprei-lhe, na voz mais calma que pude encontrar, assim de repente.

quarta-feira, setembro 22, 2004

Vícios


Na minha pele aplausos. Nas veias salientes das minhas mãos muitos aplausos. Hoje, em poucas horas, absorvi dois espectáculos, que ainda mareiam no meu corpo como se não admitisse sequer uma gota de cansaço. Fernanda Torres entra em palco. Fernanda Torres, filha da eterna Fernanda Montenegro, os mesmos olhos fundos, o mesmo corpo esguio, a brotar sensualidade em cada instante e em cada fracção gestual. Impõe-se logo ali, naquela entrada retumbante, estrondosa, desbragada, o primeiro ímpeto. Um desejo quase voraz de ignorar os outros espectadores, lançar-me ao palco e fazer resvalar a minha língua naquelas pernas até que a boca ficasse absolutamente enxuta. Aquilo à minha frente não era uma mulher, era uma escultura de Rodin. Aquelas longas pernas, balanceando por baixo da mesa de vidro em cima do estrado, não eram pernas de mulher. Aquilo era a memória do trajecto hipnótico dos dedos de Davinci, delapidando a pedra até que dali se vislumbrasse a perfeição. Como me apeteceu aplaudir tamanha oferta. Tive que cerrar as unhas no veludo da cadeira e descansar o demónio que queria romper o meu ventre. Tive que cruzar as pernas, disfarçar o calor que vinha de dentro, que açulava, violento e rude, à minha face e ao meu pescoço, tive que me tocar nos ombros e entrelaçar os dedos das mãos, acalmar um rio de vontade que crescia e crescia e se tornava um gigante incontrolável, quase irremediavelmente incontrolável. Fernanda Torres, e a sua voz acabada de chegar dos céus (ou dos infernos), a ditar histórias de vida, alicerçadas no sexo, na liberdade, na negação veemente da hipocrisia e do pudor. A actriz sozinha em palco, debruçada em modos provocantes, sobre uma mesa de vidro, agitando as palavras e alvoroçando a pacatez da assistência, a incitar a luxúria como se disso dependesse a sua vida, a firmar as histórias na memória de quem assistia com todo o arrojo imaginável. Eu encantado, eu e o demónio do desejo a alongar-se, a crescer muito depressa. Cada tonalidade de voz na palavra certa, cada história rica de personagens, de cores, de feitios, de situações despudoradas. De sexo. Aquilo tudo encheu o palco e atirou erecções à plateia, aquela abundância de imagens que se soltavam, naturais, dos lábios encarniçados de Fernanda, aquele chorrilho de afrodisíacos, de alegorias tão nítidas que me incomodavam de prazer. Aquela mulher, a abarcar todos os olhos, todas as mãos, todos os ouvidos, aquela mulher a ensopar de desejo cada um de nós, aquela mulher, parecida com um beijo, muito parecida com o amar, muito próxima do Amor.
Não me lembro de tanto vigor na aclamação final. Já assisti a muitos espectáculos e nunca tinha sentido tanta energia a ir e a vir, palco, plateia, palco, plateia, palco, plateia.
Do Teatro Dona Maria, ainda com o apetite em mim que desbotava a cidade, subi até ao Largo de Camões. O céu esmaecido, a convidar chuva, a dar eco às vozes que, de outra forma, seriam sussurros, seriam silêncio. A Ana Rita não tinha palavras, dizia que não tinha palavras e eu acreditava. Eu a rebolar entre os comentários e os risos espontâneos dela. Eu estava fervente, não dava conta da noite a esfriar, balbuciava palavras como se bebesse delas a minha luz. A conversa a fluir, as gentes a convergirem na Praça Luís de Camões, formando grupos, juntando acenos e risos. De repente, imerge duma esquina ou detrás de um carro que passa na rua, uma artista de rua, transportando, frenética, o seu carrinho de sonhos e marionetas. Não passaram dois minutos. O céu amareleceu, do interior negro dos automóveis olhos que brilhavam. Não passaram, por certo, mais que dois minutos. À volta da artista de rua e da sua carroça, que me fez muito lembrar um cenário dos filmes de Tim Burton, as pessoas, uma multidão. E a artista, com um nariz abrupto a sair do rosto, no centro da praça, pôs-se a desenlaçar os bonecos. Deu-lhes vida, fê-los gesticular e guinchar, tal e qual nas obras de Burton.
Aplausos. Na minhas mãos aplausos, às noites feitas com o mesmo ardor que esta.

Lisboa, muitas vezes Lisboa

Posted by Hello

Quando a chuva não é esperada tudo pode acontecer. Lisboa quase se detém, a olhar os pingos que caem do céu, sem nenhum acanho. Lisboa à chuva não faz sentido. Lisboa à chuva, em Maio, não faz sentido.
Hoje, que o logro do clima trouxe o caos e trouxe ao olhar das pessoas o desapontamento, pus-me à procura da melhor resposta às tuas palavras. Comecei a despreocupar-me das gentes que passavam, no regresso a casa. Olhava o chão, atento às frases e às palavras, punha os passos ao pendor dos textos. Não me lembrava dos prédios que ombreavam entre si em busca da noite, sôfregos, inquietos, sombrios. Esquecia-me dos passeios, das montras e das coisas dentro das montras. Queria apenas responder-te, chegar a casa com a missiva já pronta, sentar-me em frente ao teclado e só parar o acto do dedilho quando a chuva voltasse ao mesmo sítio de onde veio. Pois foi isso. Tentei absorver o impacto do meu silêncio. Tentei muito abrir o silêncio dentro de mim e oferecê-lo aos outros. Gritar-lhes um bafo de ausência. Desprezar as sextas-feiras chuvosas, ignorar o trânsito, abstrair-me dos fantasmas que olhavam o mesmo mar que eu, responder indiferença à altivez dos outros. Eu quis só pensar na tua carta e na minha resposta à tua carta. E assim fiz. Estas palavras como companhia, estas frases como uma música que acorda comigo e cresce até o dia findar, este texto como protecção aos dias enganadores. Tive que deixar de saber se era já noite ou se era a tarde a entrar na noite. O texto dentro de mim a aumentar, a aumentar, como este céu encoberto a crescer, a crescer. O cruzamento de muitos corpos apressados, o ruído mecânico da cidade, o ruído sofredor da cidade, o som oprimido das ruas que se agitam com os desejos das pessoas. Penso nestas palavras e atravesso a rua. A obscuridade dos prédios sobre o meu corpo, sobre a minha pele, os meus ossos formavam gestos e a minha roupa ia ao seu encontro, palavras, palavras, dentro da minha cabeça palavras. Chegar aqui não foi num instante.