quarta-feira, setembro 22, 2004

Vícios


Na minha pele aplausos. Nas veias salientes das minhas mãos muitos aplausos. Hoje, em poucas horas, absorvi dois espectáculos, que ainda mareiam no meu corpo como se não admitisse sequer uma gota de cansaço. Fernanda Torres entra em palco. Fernanda Torres, filha da eterna Fernanda Montenegro, os mesmos olhos fundos, o mesmo corpo esguio, a brotar sensualidade em cada instante e em cada fracção gestual. Impõe-se logo ali, naquela entrada retumbante, estrondosa, desbragada, o primeiro ímpeto. Um desejo quase voraz de ignorar os outros espectadores, lançar-me ao palco e fazer resvalar a minha língua naquelas pernas até que a boca ficasse absolutamente enxuta. Aquilo à minha frente não era uma mulher, era uma escultura de Rodin. Aquelas longas pernas, balanceando por baixo da mesa de vidro em cima do estrado, não eram pernas de mulher. Aquilo era a memória do trajecto hipnótico dos dedos de Davinci, delapidando a pedra até que dali se vislumbrasse a perfeição. Como me apeteceu aplaudir tamanha oferta. Tive que cerrar as unhas no veludo da cadeira e descansar o demónio que queria romper o meu ventre. Tive que cruzar as pernas, disfarçar o calor que vinha de dentro, que açulava, violento e rude, à minha face e ao meu pescoço, tive que me tocar nos ombros e entrelaçar os dedos das mãos, acalmar um rio de vontade que crescia e crescia e se tornava um gigante incontrolável, quase irremediavelmente incontrolável. Fernanda Torres, e a sua voz acabada de chegar dos céus (ou dos infernos), a ditar histórias de vida, alicerçadas no sexo, na liberdade, na negação veemente da hipocrisia e do pudor. A actriz sozinha em palco, debruçada em modos provocantes, sobre uma mesa de vidro, agitando as palavras e alvoroçando a pacatez da assistência, a incitar a luxúria como se disso dependesse a sua vida, a firmar as histórias na memória de quem assistia com todo o arrojo imaginável. Eu encantado, eu e o demónio do desejo a alongar-se, a crescer muito depressa. Cada tonalidade de voz na palavra certa, cada história rica de personagens, de cores, de feitios, de situações despudoradas. De sexo. Aquilo tudo encheu o palco e atirou erecções à plateia, aquela abundância de imagens que se soltavam, naturais, dos lábios encarniçados de Fernanda, aquele chorrilho de afrodisíacos, de alegorias tão nítidas que me incomodavam de prazer. Aquela mulher, a abarcar todos os olhos, todas as mãos, todos os ouvidos, aquela mulher a ensopar de desejo cada um de nós, aquela mulher, parecida com um beijo, muito parecida com o amar, muito próxima do Amor.
Não me lembro de tanto vigor na aclamação final. Já assisti a muitos espectáculos e nunca tinha sentido tanta energia a ir e a vir, palco, plateia, palco, plateia, palco, plateia.
Do Teatro Dona Maria, ainda com o apetite em mim que desbotava a cidade, subi até ao Largo de Camões. O céu esmaecido, a convidar chuva, a dar eco às vozes que, de outra forma, seriam sussurros, seriam silêncio. A Ana Rita não tinha palavras, dizia que não tinha palavras e eu acreditava. Eu a rebolar entre os comentários e os risos espontâneos dela. Eu estava fervente, não dava conta da noite a esfriar, balbuciava palavras como se bebesse delas a minha luz. A conversa a fluir, as gentes a convergirem na Praça Luís de Camões, formando grupos, juntando acenos e risos. De repente, imerge duma esquina ou detrás de um carro que passa na rua, uma artista de rua, transportando, frenética, o seu carrinho de sonhos e marionetas. Não passaram dois minutos. O céu amareleceu, do interior negro dos automóveis olhos que brilhavam. Não passaram, por certo, mais que dois minutos. À volta da artista de rua e da sua carroça, que me fez muito lembrar um cenário dos filmes de Tim Burton, as pessoas, uma multidão. E a artista, com um nariz abrupto a sair do rosto, no centro da praça, pôs-se a desenlaçar os bonecos. Deu-lhes vida, fê-los gesticular e guinchar, tal e qual nas obras de Burton.
Aplausos. Na minhas mãos aplausos, às noites feitas com o mesmo ardor que esta.

2 comentários:

Nuno Catarino disse...

David! Folgo em registar a tua adesão à blogosfera. Vou guardar o link para umas visitas que certamente serão assíduas (o teu modo de arrumar as palavras merece a maior divulgação). Felicidades com o blog. Abraço

ContorNUS disse...

Na tua escrita, a dimensão suspensa.
Num voo razante sorves fragmentos de momento, fugazes, irreversíveis até...
Inebriado, preenches o sulco de silêncio, até aos confins inabitados do pensamento.