quinta-feira, setembro 30, 2004

Sonhar o imprevisto


Fechar os olhos e deixar Aqua Bassino a tocar. Chegar a casa, fechar os olhos e escutar doses felinas de trompete, assim perto do relaxamento. Chegar do sol em Lisboa. Chegar de dentro da tarde, finalmente primaveril, ouvir as pessoas no jardim, contemplar um cão saltar as sebes com vigor e com saúde, ver que a brisa morrinhenta se esbate na cara e sentir que ela suspira, que eu suspiro há tanto tempo por algo que nunca irá acontecer. Fechar os olhos. Estar no Chiado, descer e subir sozinho o Chiado, sentar-me na esplanada, ler as histórias mais ou menos inesperadas de Clarice Lispector, escutar notas de piano ao invés das vozes das pessoas. Estou no Chiado nesta primeira tarde límpida do ano. Se não observo nada de novo, sinto algo novo. Se tiro os olhos do pequeno livro de capa preta e olho à minha frente não vejo nada novo, mas parece que sinto algo que muda. Algo que envelhece. Como eu nestas horas do desalento e dos monólogos interiores. Gostava de dizer «ai, Lisboa, dá-me cada novo tesouro e cada vez melhor», mas fico-me pelo silêncio, fico no silêncio.
Fechar os olhos, inclinar a cabeça, escutar o enlevo da música de Aqua Bassino. Eu queria dizer tanta coisa. De olhos fechados, a ver as pessoas muito longe, as pessoas mudas quase espectros na minha memória. Serei eu, pergunto. Serei eu perante as pessoas, pergunto.
Passo aos meus ligeiros acasos e transformo-os em grandes acontecimentos. É uma questão de sobrevivência. Então aqui vai: ontem voltei a cruzar-me com ela. No bar terraço do CCB, dividia a atenção entre o rio, a movimentação parcimónia dos barcos no rio e as páginas finais do livro de Philip Roth, quando a vi entrar. O mesmo estilo elegante e negro, o mesmo olhar felídeo, o mesmo sorriso tímido e quase quase libidinoso. Ao seu lado marchava um rapaz. Calças de ganga azul claro, ténis azul florescente, camisa branca com riscas horizontais vermelhas e riscas verticais azuis (ou seria ao contrário?) e, como remate final, não menos importante na concepção visual do homem, um belo e luminoso par de meias brancas. Não sou de julgar os outros pela vestimenta. Mas sempre entendi o vestir como antecâmara à maneira de ser de cada um, aos seus gostos, à sua sensibilidade. O vestir como curta-metragem do ser. E esta descrição serve apenas o propósito, honesto e simples, de te fazer entender o meu choque. Então não havia de se colar ao meu corpo o abalo depois de apreciar tão extravagante diferença de estilos entre os dois? O passear elegante e cheio de subtileza dela lado a lado com o ressonante marchar do namorado. No primeiro e sempre desembaraçado ímpeto ri-me, claro que me ri. Tal como gracejei todo por dentro quando, do canto do olho, o vi, com aquele corpo grosso e liso de qualquer subtileza, beijá-la e agarrá-la como quem agarra e beija um tesouro mas não sabe que é um tesouro. Não foi ciúme embora também não negue que desejei estar no lugar dele. Aliás, mesmo sem o conhecer, digo já que sou eu mais merecedor do lugar do que ele. Mas estas posições privilegiadas de amante de mulher encantadora não se merecem, conquistam-se. Ele conquistou-a e eu não. A única coisa que alcancei foi o meu nome e o meu rosto na memória dela. Sim, é verdade, ela ainda se recorda de mim. Continuei a minha leitura, em passos largos para o grande final de «A mancha humana». A minha mente saiu do bar terraço e dos ombros descobertos dela, e cravou-se num lago gelado nos Estados Unidos, na conversa tensa entre dois homens que lá havia. E por saber que tinha nos dedos as últimas páginas de um bom livro, no meu sentir, na minha disposição, no meu olhar brilhou uma certa melancolia. A mesma que sempre me acompanha quando as páginas finais de um bom livro correm mais depressa ainda que a vontade de o terminar. Foi com esse olhar, mesclado de bruma e satisfação (pelo prazer que é ler um livro assim), que ela me abordou, dizendo que me tinha reconhecido há pouco mas só agora, enquanto passava, teve a certeza que era eu. Fez uma observação qualquer sobre os jornais que estavam em cima da mesa e eu sorri. Na curteza do momento, parte de mim ainda estava acocorada, à escuta, na superfície gelada daquele lago, e a outra parte a refazer-se do segundo pasmo da tarde. Ela pareceu-me tímida mas ainda conseguiu dizer que ia trabalhar mais um pouco e eu voltei a sorrir, dizendo-lhe que ia continuar a minha leitura. Até logo, soprei-lhe, na voz mais calma que pude encontrar, assim de repente.

1 comentário:

Anónimo disse...

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