quinta-feira, setembro 30, 2004

Melancolia


«Como a solidão, este jardim abandonado anoitece. Guardo derrotas como se guardasse segredos. Anoiteço sobre este jardim. Agora, entre as ruínas, sou igual a estas árvores que morreram no instante em que tudo deixou de fazer sentido. No momento em que partiste, deixei de fazer sentido.» in Antídoto, de José Luís Peixoto
Sabia que, durante a leitura deste livro, encontraria nele fragmentos de mim, estilhaços daquilo que vou sentido, nestes dias estranhamente mornos de Outubro. Já ia lançado ao sono e não resisti. Nestes instantes reconheço a vida com qualidade. Na luz como um lençol fresco e ténue sobre mim, no silêncio que a noite alberga ao fim de um vendaval de muitos sons rudes da cidade durante o dia, nas palavras dos outros quando reflectem o meu pulsar pelas coisas simples. Nestas imperceptíveis coisas eu me levanto, na invisibilidade das fendas na calçada eu fujo ao negro, eu interrompo estes diálogos mudos dentro da minha cabeça, eu imito um sorriso antigo e sou um sorriso como a felicidade memorial. Eu tenho esperança. Eu deixo de esmorecer, eu impeço-me do trago afável da solidão quando vivo estas coisas simples. Estas coisas pequenas, de prazer imperecível, como as mais exuberantes descobertas nos períodos essenciais da nossa existência, como pensar naquilo tudo que me faz mal e não deixar, mesmo assim, de crer num tempo longe deste e melhor que este, e mais feliz que este, e mais completo que este. Nas coisas tão pequenas do quotidiano. Do quotidiano, aparentemente sem esperança nenhuma, se desmascarar e não ser tanto de correria, tanto de diálogos bravos e desconexos dentro da minha cabeça, não ser tantas vezes o letargo daqueles que pensamos estarem mais próximos, de dias inteiros às escuras com um saco negro pelo rosto abaixo, pelo peito abaixo, pelo corpo inteiro abaixo até ser de noite quando o som que chega até mim dizer o contrário. Noite dentro do dia. A bruma dentro da luminosidade. Uma luva preta que sufoca esta pedra branca acabada de sair da espuma do mar.
Esticar as pernas e encostar a cabeça. Decliná-la. A ligeireza da manhã, a cabeça e o corpo entorpecidos pelo cintilo do sol no vidro da carruagem, no rosto, na pele, sob a pele, dentro das veias, dentro do sangue, na velocidade da corrente do sangue. O café amargo doce amargo nos lábios, na língua, sair do escuro e abrir a porta, ver uma árvore no quintal em frente, e ouvir nela pássaros, ver o verde, ver o Outono parecido com a Primavera, ver em todos os dias semelhantes muitas diferenças. Como chegar à estação e cruzar-me com dezenas de pessoas todas iguais e logo a seguir muito diferentes como se existisse dentro delas um ódio muito antigo, olhar em frente e sentir na cara o apego das suas conversas, da sua melancolia, do seu aroma, das suas dúvidas. Estagno perante o vapor das pessoas. Às vezes, fico. Tantas vezes dou um suspiro como que a salvar-me, ou a fazer de conta que há-de estar próxima uma correnteza de pequenos prazeres e que eu possa embarcar nela. E quando colocar os dedos nesse curso o sentido da minha vida será o meu jardim.
«Tenho medo de que não estejas aqui, neste banco negro, ao meu lado, dentro desta escuridão onde também estou. Mas eu sei que estás aqui. Se quisesse podia dar-te a mão. Se quisesse, podia dizer o teu nome. Mas eu não sei se estás aqui. Permaneço. Imóvel. Em silêncio. Cheguei para sempre a este jardim e quero que esta noite negra continue para sempre e que nunca tenha de saber se este rosto, aqui, ao meu lado, dentro da escuridão, és tu ou a imagem de ti nesta memória que está aqui ou que sonha que está aqui.» in Antídoto, de José Luís Peixoto.

1 comentário:

Anónimo disse...

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