domingo, janeiro 15, 2006

Jarhead (welcome to the suck)


Tem à sua frente uma gata que lambe a pata. Em baixo, junto ao chão, as colunas deixam fugir os primeiros acordes da banda sonora do filme Goodbye Lenine. Espalham-se pelo chão frio, sobem pelos móveis, ultrapassam os puxadores das gavetas, trepam os Cds mal empilhados, colam-se à manta, em cima do sofá. A gata senta-se, enrola a cauda por cima das patas brancas. Escuta-a, e observa o que ela não vê, imaginando, no seu deserto, o que ela poderá estar a imaginar, enquanto aquele magnífico piano lhe cobre os pés com um pó feito de cristal.
O que ele tem à sua frente pode ser um sítio árido, pode bem ser uma história de infinidade e desorientação. De desapego. No entanto, aquela alma moribunda, deixa-se estar sentada em cima de duas almofadas cor de laranja, cheias de esferovite. Das teclas do piano de Tiersen saem pequenos seres vivos que se movem livremente e continuam a sua multiplicação matemática numa cadência própria de um doido, de dois doidos, de muitos doidos. Por tanto deserto e tanto sossego, amarinhando todas as superfícies que encontram: o tecido azul do sofá, a sombra nas paredes, a madeira da estante de livros, as malhas encardidas do tapete, a planura da mesa de trabalho, o vidro negro da televisão e o reflexo dentro dele, a grafite na ponta de um lápis, as letras miúdas na folha de um jornal.
Aqueles braços tombados, em cima das almofadas, não se conseguem erguer. Aqueles dedos, que saem dos braços mortos, não se mexem. Estão inertes. Nem a correnteza da melodia os anima. Ali estão, presos, inúteis, chorosos. Estar sentado, de braços ao longo do corpo. Começar uma impetuosidade, criar um meneio qualquer sem sentido nenhum, construir uma explosão e vê-la crescer, expandir-se e morrer, alimentar o vazio.
O que fazer, que caminho seguir, que gesto, que palavra, que palavras, para onde, e para quê, porquê, porquê sentir, e porque não sentir, o que fazer quando o que sente não é aquilo que se quer sentir e não se sabe nada sobre a verdade ou sobre o futuro e muito menos sobre o passado, o que fazer dentro desta colmeia de trivialidades.
Afinal, há um recipiente vazio junto aos pés. É um frasco de vidro. As mãos movem-se. Os seus dedos no vidro são como chuva sobre chuva sobre um rio. Há, nesse instante, de pele sobre vidro, de frio contra frio, de luz contra luz, a consciência plena da sua própria inutilidade. Estar sentado, de braços estendidos que seguram um frasco oco. Estar só, sentado, deserto, despovoado. Transparente.

domingo, janeiro 08, 2006

House


Todos os dias me lembro de carimbar o regresso. Há quanto tempo. Meras frases sem nexo que rodopiam por dentro e abrem um trilho em direcção ao retorno. Uma voz sem dono. Uma voz cavernosa e sem ordem, sem ninguém que a governe. Todos os dias a pensar no próximo retoque. Depois, este sítio árido onde, às vezes, as palavras se resguardam.
Presumo que já ninguém visite este sítio, largado ao futuro e à eternidade gélida do espaço virtual. Portanto, ouço o eco das teclas, ouço o tremelicar da música dos Sigur Rós, ouço o esfregar das mãos, o estalar dos dedos, o recomeço, a turbina interior a acender-se de imagens, vejo cores, vejo diálogos como imagens, pinturas expostas ao ar frio da indiferença. Esta teima na ausência. O capricho de ignorar esta necessidade de desordem, de desarrumar as ideias e de as voltar e entrelaçar, em busca de outros horizontes, outras viagens. Outras descobertas.

House M.D., na Fox, às terças-feiras à noite. Depois de Six feet under, Once and again e The X-files, esta é uma das séries melhor escritas e melhor interpretadas que me lembro de ter visto. Destaque gigantesco para a representação do actor Hugh Laurie, o médico controverso e genial lá do sítio. Estado de puro esplendor.