quarta-feira, abril 20, 2005

2046


Há filmes que se extinguem e se esquecem, há filmes que se alcançam. E existem outros, como 2046, que me fazem adquirir mais vida, mais desejo pela vida. Ocorrem à vista os planos impelidos propositadamente aos detalhes e às coisas esquecidas, como o esvoaçar de pés, dentro de sapatos pretos, a delimitarem no soalho as palavras vindas de cima, a suspensão angelical do bico da caneta sobre o papel, perpetuando o ritmo delirante das ideias, o baile das cores quentes, a presença massiva de sensualidade e de vultos no ritmo perfeito. A mesma exiguidade entre os corpos e a mesma intimidade dos espaços que In the mood for love. É um filme em forma de arte, que grita talento em cada plano, em cada pausa entre as vozes e entre os rostos que se observam. E depois, a servir de amplificação ao filme, há ainda a música. Que se mistura no cenário e nas roupas, que escorrega delas até à sombra, que é o som de uma porta que fecha, que é a aspereza de muitas vozes entrançadas no fumo que ondula perto do tecto, que é aquele lugar invisível entre uma pergunta e uma resposta. No final, quando me acontecer o alude abrupto de imagens de vida, estas vão lá estar

sábado, abril 09, 2005

Mar Adentro, tantas vezes eu quis


Não sei se o teu coração também se encolheu e depois expandiu quase ao fundo do mundo, como o meu, após teres visto Mar Adentro. Enquanto esperava que o Metro chegasse, tentei construir frases que expressassem correctamente o avesso da minha pele. A onda densa e secreta que sinto por dentro e toma conta de mim quando o que vejo, o que ouço, o que cheiro, o que tacteio, é admirável. Não sei se, tal como eu durante o filme, ficaste sozinha, sem cabeças à tua frente, sem cadeiras ou escuridão, sem paredes e sem portas e perdeste a noção do tempo, do espaço e do palpitar do teu peito nesse espaço e nesse tempo. Queria perguntar-te, agora, ignorando as ruas, os prédios, as planícies, as encostas, os vales, as montanhas que nos apartam, se o tivesses visto ao meu lado nos teríamos encontrado e contemplado o sorriso um do outro, plenamente repletos de vida, e de morte. Não sei se o teu rosto se contraiu, não sei se os teus olhos se aguaram, não sei se durante Mar Adentro te sentiste pequena e grande, te imaginaste a olhar o espelho e viste, precisamente como eu, dois espectros, duas formas de luz, vizinhas como dois grãos de areia numa praia e, no entanto, impossibilitadas de se tocarem, de se acariciarem, nem que fosse por um momento. A vida e a morte.

sexta-feira, abril 08, 2005

Os dias do fim e do princípio


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saía da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e ocos, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros cochichavam. Rugiram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.