sexta-feira, outubro 01, 2004

E se não houver nada?


O que há a fazer quando não existe, realmente, nada para contar? Como sobrevivem as cartas, os encontros nos cafés, as reuniões entre amigos à mesa de restaurantes, os passeios de mãos dadas que roçam o viço dos jardins? Vivem de quê, os diálogos e os monólogos? Pergunto eu, como se consegue então suportar a ausência absoluta, firme, cientificamente comprovada, de factos novos na vida das pessoas? Como é possível tal coisa? Enquanto caminhava rumo ao meu covil, pensei numa escrita mais ou menos original, a ser especialmente elaborada como resposta ao teu último contacto. Afinal, eu é que me desleixei, eu é que olhei para o lado, eu é que mandriei, nesta história de regularidade escriturária. Vi o meu rosto transgressor em cada reflexo. Confesso a tormenta. Aconteceu-me até, vê lá tu, permanecer largos fragmentos do dia a pensar na remota possibilidade de, um dia – o mais inesperado de todos – assistir ao colapso estrondoso da nossa amizade. Às vezes dou por mim a imaginar que as relações têm garantia para uma vida, pelo menos para uma vida. E mesmo se, por instantes, somos enrolados no engodo do Amor ou da Felicidade ou das milhentas tarefas que a Vida nos proporciona e a deixamos à deriva, a Amizade, pensamos sempre que tem automatismos próprios e que não precisa de um retoque ocasional nem de constante atenção. Eu sei que nem a distância geográfica pode justificar a queda nesta esponjosa preguiça. Afinal gosto ou não gosto? Temos ou não temos saudades das pessoas? Não basta sabermos que está tudo bem, não é suficiente sentirmo-nos confiantes e «seguros» que aquilo ali à nossa frente é uma relação protegida por laços de ferro e que nunca irá ser destruída. E, no entanto, quantas vezes catapultamos a mente até à planície acessível do «está tudo bem, ela está bem, amanhã escrevo-lhe, ela deve andar ocupada com as suas coisas»? Mas o nosso caso é diferente, ripostas tu. Nós temos a certeza, nós seremos sempre amigos, dizes, digo, dizem.
Regresso às indagações, para que a linha mestra desta divagação não se diminua: como sobrevivem as gentes quando não acontece nada? O que é uma vida sem notícias, o que são os dias sem a algazarra e a gritaria de uma suculenta novidade, como pode fruir com a mesma sobriedade o espírito do Homem quando, verdadeiramente, nada se passa que mereça uma mensagem escrita, quanto mais uma carta? Se calhar, perante a vivência na capital cultural europeia, vai parecer-te extravagante este desassossego de aldeão. Se calhar, traduzes esta carta a um francês teu amigo ou teu amante (ou o que seja) e os dois vão até à varanda atirar à rua duas, três ou até mais gargalhadas. Assim, como dois alienados, tombando o corpo sobre o varandim, rindo, gozando, troçando destas palavras, de mim. Não precisas dizer que não, que estou parvo por te afrentar com estas dúvidas, estas fantasias. Não são dúvidas. São muito menos fantasias, que pensas tu?
Onde é que eu ia? Sim, tentava encontrar uma hipótese que desse conta das questões acima escritas. Não dizes nada? Observas-me nesse tom apalermado, sem saberes o que fazer, que gestos proferir. Até mete impressão, até metes impressão. A tua letargia, o teu riso que agora se transfigura e aparece como vergão, subtilmente, no meio da testa. Impressionante. Pois é, não vejo agora esses dentes, já não noto a mesma desenvoltura, a mesma firmeza e postura de brincadeira. Não me distraias, ouviste? Deixa-me terminar este escrito. Deixa de tagarelar ao meu ouvido, sai de dentro da minha cabeça, de dentro do meu sangue. Comporta-te.