segunda-feira, outubro 04, 2004

A carta


«É com algum assombro que recebo e leio a sua missiva. Graças a Deus a Internet é falível e esta carta abandonou o seu curso natural, e veio parar aos olhos de outro destinatário. O destinatário errado.
Porque não necessito de contestar uma evidente e escabrosa calúnia, dedico estas palavras à constatação e à divulgação de um facto mais óbvio ainda: Vossa Excelência é uma aberração. Pior: Vossa Excelência é uma aberração e tem consciência disso. Mais do que tudo, adopta um discurso populista nauseabundo, há muito ultrapassado. Acredito mesmo que, ao longo destes anos de observação dos comportamentos humanos, Vossa Excelência excedeu, de uma forma vil e brutal, todas as minhas expectativas mais nefastas. E por ser assim, não me resta outra alternativa senão pressentir o seu futuro em tons de negro. Obviamente, está despedido. Bem-haja.»
Havia três semanas que esta carta repousava no tapete do quarto, recolhendo todas as brisas, todos os dias e todas as noites que, desde então, sucederam. Havia vinte e um dias que Miguel tinha abdicado da vida costumeira, integrada no tempo e na passagem do tempo. Não saia da cama. O cheiro e o choro confundiam-se e eram amantes naqueles lençóis. Miguel tinha sido despedido à custa de uma brincadeira. O corpo de Miguel desfasado do tempo, e o tempo, indiferente aos seus lamentos, acertava com a vida e prosseguia impávido, como a sugestão da chuva na fenda de uma manhã brumal. Nestes dias inteiros e vazios, não respondia a telefonemas, não saída de casa, quase não se alimentava. O marasmo e a derrota fixavam-lhe os movimentos. Era certo haver naquele comportamento o detrito do Passado. A carta, aberta e já com pó em cima, dançava à custa de uma corrente de ar. Miguel desaparecia nos lençóis imundos e na sua própria inércia. Para ele era dia, era noite, era uma noite aberta ao dia.
Um estrondo vindo do hall não o sobressaltou. O eco e a sua voragem rente ao chão moveu a carta mas não a levantou. No quarto, entram dois bombeiros, e com eles um bafo de energia, que rasgou de vez a cortina de pasmo instalada na casa. Atrás deles, uma rapariga de longos cabelos ruivos. Debaixo do fluxo grosso que vinha da rua e se espalhava no silêncio das coisas, vinha Matilde. Afastou os bombeiros e o peso dos seus fatos. Lançou-se a Miguel e abraçou-o. A decadência impregnava-se-lhe na pele. A decomposição das paredes e das sombras dos móveis nas paredes escorria-lhe no rosto. Sentia-a, degustava-a, enquanto abraçava Miguel com o conforto que lhe restava, depois de semanas mergulhada na angústia. Um beijo impulsivo saiu-lhe dos lábios e caiu, sem suavidade nenhuma, na face seca de Miguel. Os bombeiros murmuravam. Bradaram «ambulância, chamem a ambulância». Matilde deu-lhe beijos como se o banhasse.

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