terça-feira, maio 17, 2005

Este céu, este mal


Na cama vejo além do tecto, vejo o céu. Sou ridícula. Nestas roupas afoitas sou uma mulher desmembrada. Quero, não quero, tenho medo, tenho medo deste céu sujo e que ele traga os teus olhos perto dos meus olhos. Deitada nesta cama só vejo a tensão do mundo espalhada sobre a casa. O telefone. Num impulso, levanto-me. O céu negro. O céu espesso e negro. Atendo, a minha voz é uma gota desse céu. Teresa? Ainda aí estás? Anda lá. A Joana. A festa. O céu que desaba. As nuvens são monstros e gritos que fazem vibrar esta cama, estas paredes, eu. O que fazes ainda aí? Dou-te quinze minutos. Vá lá. Nem imaginas quem cá está. Ele. Tu que eu quero, que eu não quero, não posso. A Joana quase a sair de dentro do telefone. Vem, vem, vem.
Quando desço as escadas não ouço o céu. Quando abro a porta do prédio não tenho sobre mim o espanto dos outros. Há pessoas que passam. Há conversas ténues que passam. Espero o táxi na borda do lancil. O céu embrulhado, vigilante. Não vás. O céu rude, os olhos do céu negros. Os automóveis passam; entro no táxi. Boa noite. Para a rua das Acácias, por favor. O senhor taxista, a música que irrompe do rádio, está um dia pesado hoje, não acha? Solto as palavras que posso. O céu enorme e negro. Enrolo palavras nas palavras do senhor taxista. Tenho os olhos nas manchas da cidade. A velocidade do automóvel. A música e depois as notícias e depois manchas verdes no vidro. Depois o céu aberto e escuro, muito perto. O senhor taxista empolgado com qualquer coisa, as novidades do mundo. Os olhos dele no espelho retrovisor. Os meus olhos nos dele muitas vezes. O céu como uma manta negra. O brilho do espelho retrovisor. Asfixio e ponho os olhos na estrada, nas árvores, nas casas que fogem. Tenho no peito os olhos do senhor taxista. O céu brutal, o céu com uma voz alongada, o céu com uma voz temerosa. Os olhos do senhor taxista em mim. O abrupto de todas as cores misturadas em todos os gritos. A convulsão do metal do táxi. Um corpo que é violentado. O céu como uma prensa. O céu como uma piscina de sangue, de metal retorcido e pedaços de roupa.
Em cima de mim já não existe céu. Há uma névoa e aromas negros dentro de mim. Tenho um homem deitado no meu colo. Tenho o sangue do senhor José nos meus braços. A convulsão do mundo. Eu sentada. Eu como uma estátua, olho o senhor José. Tem os olhos abertos, e neles o medo. Coloco a minha mão na sua testa e o céu está dentro de mim. Quando os olhos do senhor José se fecham é o céu que se fecha em mim. Eu sou a paz que é feita de sangue.