quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O pacto da eternidade


Quero lembrar-me: a porta da sala a abrir-se, o meu avô sentado numa poltrona vermelha, a balbuciar injúrias inofensivas para dentro da televisão, aos homens de gravata e de discursos eloquentes. Quero que a lembrança se afirme na minha pele e me conte: a porta que se abre completamente e se esbate contra a parede, o meu corpo frugal desliza, esconde-se, monitoriza com redobrada vigilância os gestos muito lentos do meu avô. Na sua face uma brusquidão. Nos seus olhos a fluência das imagens, das notícias. Encosto-me atrás da estante; espreito, ouço a sua voz esvair-se para dentro do ecrã, vejo nos seus óculos uma revolta, vejo esse tumulto coado mas não me assusto, sinto a sua indignação mas não reajo. Espreito, através dos livros de Mao Tse-Tung, através dos livros de Álvaro Cunhal, através das molduras empoeiradas. Espio-lhe o corpo embutido no couro escarlate, a barriga debaixo do colete verde e o boné, abandonado na sua cabeça, como albergue evidente da calvície. Quero recordar-me, quero muito recordar-me: então, ele, que agora atira gargalhadas ao ar e com elas faz estremecer os móveis escuros, diz «vem cá, rapaz», entre a pausa das vozes magnânimas vindas da caixa de luz diz «senta-te aqui, pega nesse banco»; é uma indução em jeito manso, é uma súplica embargada pela corrente alegre da boa disposição.
O meu avô, enfiado sem pressa nenhuma naquela poltrona majestática, em frente ao televisor. Eu sentado num banco de madeira, ao lado dele, imóvel, com as mãos entrelaçadas no colo, aguardando um qualquer gesto, um qualquer indício de movimento, que me faça saltar daquela pose de mimo. Eu e o meu avô, observando as notícias que se colam ao rosto como lenços de cetim e salpicam as paredes da sala, atrás de nós. Agora lembro-me: numa faísca de silêncio, o meu avô levanta o braço. Era um meneio feito de tempo, feito de memórias, assente na dignidade dos anos e na esperança sempre viva desses anos. Aquele braço no ar a levantar com brio a mão, emaranhada em todos os Invernos e todos os Outonos. Lembro-me, quase sem querer: aqueles dedos como labirintos esponjosos de uma existência sobrevivente, bordejada pela inconstância da vida, como os próprios comentários vindos da rua, ufanos pecadilhos da duração humana. Lembrar-me, pegar nas memórias dessas mãos que cinzelavam perfeitamente as palavras, e a demora entre as palavras, entreter-me, nestes dias do recomeço, a olhar os rios de sombra, a escutar-lhes a vontade férrea de serem muito mais que linguagem e indicações.
Desfaleço. Quando fecho os olhos e me imagino ainda pequeno, a reter no corpo as vibrações de gente maior que a minha voz. Desvaneço e sigo o torcer do tempo em busca da eternidade.