sexta-feira, outubro 07, 2005

O homem da gravata


«Tenho 45 anos e nunca pus uma gravata». Ramiro Gonçalves levantou a voz, no meio de uma conversa entre colegas de trabalho. «Nunca pus uma gravata e repudio a coisa.» Sem que ninguém lhe ligasse, Ramiro Gonçalves resolveu adoptar um tom algo sibilante ao que dizia, aguardando a merecida atenção. Como os outros continuavam a rir, de copo na mão, e a discutirem os assuntos mais insípidos, Ramiro pôs-se todo num grito. «Usar gravata é um acto ridículo que não traz nenhuma utilidade ou benefício à vida das pessoas. A gravata é um objecto supérfluo.» Assim que deixou a voz abater-se largou da boca um sorriso de triunfo. Todos os homens e todas as mulheres pararam de beber e interromperam as respectivas conversações. Foram 4 ou 5 segundos em que o silêncio se sobrepôs à algazarra. Uma paz feita de cimento veio cair sobre todos os sons dentro de cada um dos movimentos. Ramiro Gonçalves, sem copo na mão e com o fôlego já recuperado, destilou nesse sossego instantâneo o seu olhar científico. Preparava nova intervenção. Nesses 4 segundos não tirou as mãos dos bolsos e fez questão de manter sólido aquele sorriso vitorioso. Enquanto todos processavam as palavras estridentes, que ainda flutuavam à superfície das bebidas, Ramiro, o homem que nunca usou gravata, reunia dentro dele uma força distinta. Esperou que chegasse o primeiro movimento, esperou que a onda de silêncio se dissipasse, esperou, com o sorriso sempre bem assente na cara, que alguém debuxasse a mais pequena reacção ao que tinha acabado de dizer. Os seus olhos, em dois segundos, desbravaram a sala cheia de mãos e cheia de copos e de rostos atordoados. Nessa profusão de vidro e líquido, reparou que haviam muitas gravatas. Então, antes que uma delas se pusesse a bailar e a puxar a voz ao dono encarniçou-se da força excepcional que explodia dentro dele e disse «A gravata é dona dos homens que a usam. Cada homem com gravata é um fantoche e gosta de ser fantoche. De manhã, enquanto a põem em frente ao espelho, dando voltas e nós e mais voltas, está, de facto, a perder tempo. Afinal, para que serve uma gravata? Embalado, Ramiro, de camisa branca franqueada, tornava evidentes as veias do seu pescoço. «Afinal, caros bonifrates, de que vos serve esse pedaço de tecido aí pendurado ao pescoço?
Aquele homem eriçado, um recém-nascido inimigo das gravatas, pendurou o discurso e estacou-se à porta do bar. Abriu-a e saiu. Atrás de si uma comoção que aumentava. Atrás dos seus ombros, a esbater na montra com a impetuosidade de uma tempestade, o tambor da multidão, as vozes da ira, o vidro a estremecer, a ondular-se em múltiplos movimentos.
O senhor Gonçalves sentou-se no lancil. Enquanto os automóveis passavam e paravam diante do círculo vermelho, enquanto a coruja no jardim em frente piava e esse som se diluía no amansar da cidade, enquanto as gravatas, dentro do bar, voltavam ao frenesim dos copos e das conversas da largura de um canto escuro, ele pensava: «de um momento para o outro tudo isto se consumirá. Porque hoje, depois de muitas possibilidades, não te encontrei. Agora, não tenho mais nada a dizer. Devia ir dar uma volta, sei lá, apanhar o ar das pessoas na noite, não sei, sentar-me no banco de jardim, estender as pernas, ver os estrangeiros de mochila às costas e os corpos feitos de uma asneira que não compreendem. Pois devia. A qualquer momento tudo isto ruirá. Não há nada mais a contar. Sigo como as velas ao vento. Sou eu mesmo o vento. Sou a poeira que vai no vento e as pessoas não notam, não vêem. Não querem ver»
Amanhecer, entardecer, anoitecer. E depois? Há alguma coisa que seja proveitosa quando ninguém está a olhar? Como um esconderijo. Como a cortina que oscila e já não é Verão. Mas parece.

3 comentários:

Anónimo disse...

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Ramiro disse...

Olá! Fiz uma pesquisa do meu nome no google, Ramiro Gonçalves, e encontrei o seu blog. Ao ler "O homem da gravata" estranhamente identifiquei-me com o "personagem"!
Texto bem estruturado e conteúdo não moralista, apenas objectivo! Parabéns!

Andréia Rô disse...

David! Se você soubesse o tesão que dá ver um homem de gravata... acho que entenderia ao menos uma utilidade pra ela..