terça-feira, março 01, 2005

Debaixo do pó, dentro de uma arca


Quis interromper a correnteza dos dias em branco. Quis relatar algo especial, que descrevesse com detalhe um acontecimento valioso, ou apenas uma onda de pensamento. Eu sei que ela vem e que ela vai, consoante outros apelos e mais urgentes necessidades. A inspiração, o alento dos que criam e dos que querem fazer dos actos simples generosos monumentos de felicidade, a verdadeira. Não sei se é deste frio feito matéria espessa e aglutinadora das ideias geniais mas, a verdade é que, hoje, nada de coerente sairá destas linhas. Reassumir o hábito diário da escrita, recuperar o uso do improviso e assistir ao crescimento desconexo que estas palavras trazem. Seguir o impulso, perseguir-lhe o odor em cada esquina, abrir uma fenda no silêncio, na noite branca, e entornar uma multidão de frases sem ordem nenhuma, como um bando de lunáticos, evadidos de uma instituição mental. Então vasculhei histórias antigas, feitas noutro tempo de maior fulgor imaginário, soprei o pó aos manuscritos assentados no fundo de gavetas e de uma arca que eu nem imaginava ter. Nesta noite, muito próxima do vazio, não me resigno. Deixo um conto muito antigo e que me fez atrair ao rosto um breve sorriso. Porque entre esse dia e este dia não existiram muitas noites frias como esta.
E a história diz:
Sem dúvida que o tempo passa depressa. Entre os dedos, dias. Entre os dedos escapam-se as horas dentro dos dias, a vida. As pessoas cada vez mais longe. As vozes das pessoas cada vez mais longínquas, a ouvirem-se de muito longe, mortiças, fracas, quase imperceptíveis, à espera de respostas, nem que sejam ocas mas que sejam respostas; o vento, a percepção de um som vindo da boca de uma pessoa que nos é familiar, as pessoas fogem umas das outras e não sabem fazer outra coisa. Pensam «depois telefono». Pensam «depois respondo-lhes, mais tarde, quando acabar o que tenho de fazer». Pensam «ainda só passaram dois dias». Pensam «só passaram três semanas». As pessoas dissipam-se diante dos dias e do tempo, e depois não lhes resta mais nada.
Depois, a Inês. Encontrei-a tímida, algo arisca, na Outra face da lua. Oculta no canto, perto do balcão de atendimento com um casal de amigos meus. Quando entrei várias pessoas me olharam, interromperam as suas conversas e olharam na direcção da porta, logo a seguir ao biombo de tijolos de vidro de várias cores. Amansei os meus gestos, condenei o meu corpo a uma ligeira pausa logo ali, encadeado pelo brilho de tantos olhos. Enquanto tirava o casaco voltaram as conversas subtis, aquele marear de sons, libertaram-me. Foi um instante. Vi-os ao fundo, a beberem chá com leite. Cumprimentei-os, sentei-me, serviram-me cumprimentos cordiais e mais que isso, sorrisos, a dizerem qualquer coisa sobre o meu cabelo ou o casaco demasiado quente para a época. A Inês diante de mim. Olhos verdes enredados numa névoa de mel. A boca igual à da actriz Patrícia Arquette. Os mesmo dentes caninos encavalitados, a mesma sensação libidinosa quando se ria. Contive-me. Sorri-lhe a intentar tocar-lhe com os lábios. Depois entrei na conversa. Só para disfarçar e antes que fosse sujeito a um reparo qualquer. O meu encantamento crescia. Havia o começo. Dentro de mim era óbvio aquele crepitar que só sucede nos melhores dias e muito raramente. Cá dentro o primeiro revolver do que dormita há tanto tempo. A perder-me nos seus detalhes, da roupa que trazia posta, do colar azul que exibia no pescoço. O casal de amigos, juntos, num beijo de meiguice. Baixámos os olhos, os dois ao mesmo tempo, o som de lábios com lábios, que não eram os nossos mas que eu queria que fossem. Eu a sorver-lhe uma voz muito ténue que me obrigava a chegar mais perto, aqueles lábios mais perto, aquela voz dela sem se deter, a contar histórias, histórias da vida que ela vivia em Londres. Estou condenado, pensei. Londres. Estou salvo, pensei. Londres, Inglaterra, longe. O freio da distância. Mas ela continuava. Estávamos os três a olhá-la, a ver aqueles dentes brancos gastarem lentamente os lábios de adolescente num rosto de mulher, a vê-la contar mais histórias, os seus cabelos escorridos, finos, revoltos. Nós os três à espera dela quando se punha a divagar, e aquela voz tão frágil, de timidez, de perda, sei lá, uma voz do fundo de qualquer coisa que quer dizer tantas coisas. E seguiu, porque nos escutava atentos, continuou. Naquele tempo todas as pessoas atrás de mim eram conversas surdas porque eu só a ouvia. A luz humilde que pendia sobre nós era já a noite do céu lá fora porque éramos nós os quatro e as palavras e o bule de chá vazio, com restos de ervas no coador de metal. No jorro de palavras ouvi «namorado». Ouvi, impaciente, «o meu namorado que está em Londres». E depois não escutei mais nada. Nem as vozes dos outros, nem as vozes dos que passavam na rua, nem a música, nem o som da minha perna inquieta. Depois deixei de ouvir todos os outros sons e só quis ver as suas cores (Porque os sons também têm cores). Contemplei o sorriso dela, muito vívido. A sala iluminou-se mas o céu lá fora, que era uma noite escura, caiu sobre mim. Quando voltei o rosto a apalpar as horas estavam a deixar-me à porta de casa e ela já me dizia adeus com os dedos colados no vidro do carro. Eram rios de leite, escorrendo no vidro turvo de tanta luminosidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Apreciei muito este pequeno relato. Obrigado.

Anónimo disse...

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