terça-feira, fevereiro 21, 2006

Este rei não vai nu


Fez, este mês, um ano que o alcancei. Quando apareceu nem quis acreditar. Li o contrato de fio a pavio e as entrelinhas, de lupa na mão. Obriguei pessoas amigas a lerem o contrato de fio a pavio, fi-las pegar na lupa e forcei-as a esmiuçar todas as letras miúdas que pudessem encontrar. Depois de demorada investigação cheguei à conclusão simples de que este Rei não é de cá. Não pode ser um autóctone como nós.
Fui a medo. Sentei-me na cadeira, em frente à menina que recebia os incautos. Os que queriam ver o Rei. Os que queriam ter o Rei, assim é que é mais correcto de se dizer. Sentado em frente à cachopa, que escrevia, li pela última vez o contrato. Tinha a caneta ao lado, cheia de tinta preta, já com a tampa fugida. «Este Rei está louco», pensei eu, a meio de um sorriso trémulo, atirado à menina. «Não pode ser, tanta generosidade, não existe». Penso mesmo que cheguei a soltar uma frase com sonoridade semelhante. Não tive outra escolha. Baixei a folha do contrato e das letras pequenas, afaguei a lupa no bolso do casaco e perguntei, ao estilo de um soldado em plena emboscada: «Isto é verdade? Posso ir ver os filmes todos que quiser? Posso ver dois filmes por dia? E só custa treze euros por mês? Não são trinta? São mesmo treze?» No fim da rajada, a menina, orgulhosa da criação que o seu amo e Rei se dispôs a fabricar e logo depois a oferendar ao seu povo, disse: «Sim, tudo isso é verdade. O cartão Kingcard custa treze euros por mês. Pode ver até dois filmes por dia e, se quiser, vê-los mais que uma vez, noutros dias.» Eu, ainda meio zombo, abri outra vez o alçapão e continuei com a minha sagacidade de atirador bem afiada. «Não há aqui algo escondido, minha senhora? Vou assinar isto e depois fico agarrado com qualquer alínea que me possa ter escapado? Ninguém dá nada a ninguém. Isto, a ser como diz, é bom demais para ser verdade. É que, sabe, para quem ama cinema como eu, para quem se alimenta da riqueza das imagens, dos argumentos, das histórias, das personagens, como eu, isto não é um cartão, é uma caverna recheada de estatuetas douradas.» Lendo nos olhos da moça que a verdade estava dentro dela, terminei o discurso do incrédulo e, finalmente, peguei na caneta e assinei. De um assomo com tal intensidade que a assinatura pouco se assemelhava à que está no bilhete de identidade.