terça-feira, fevereiro 21, 2006

À manhã


É verdade que as cidades engolem as pequenas aldeias. É verdade que os dialectos nas aldeias são dialectos alienígenas para os citadinos. É verídico que os temores e as dificuldades entre as pessoas da aldeia são os mesmos que enfrentam as pessoas na cidade. Se eu pudesse voltar atrás, àquela sombra amena, sob o manto verde de folhas e de ideias. Sentar-me, encostar a cabeça no tronco da árvore e assistir à corrida de nuvens, naquele oblongo céu azul. Mas não consigo evadir-me e chegar tão longe. Não me consigo libertar deste ressoar de gente e desta cidade em forma de maleita. Pelos meus passos, pela minha pele eriçada, pelos meus ombros que se empapam de ruído, eu esmoreço. Farto desta sujidade, desta língua de imundície, que se separa com afoiteza do buraco onde grela e vem ocupar o meu silêncio, as minhas indagações à conta da vida. Por isso, fujo muitas vezes em busca da leveza da alma. Procuro despistar os vermes e ludibriar a pestilência da cidade. Fujo ao primeiro e ao segundo encontro. Viro esquinas, escondo-me por baixo das oportunidades que surgem.
Então, para trazer a pureza até mim, vou ao teatro e extirpo do seu ventre as personagens e os diálogos ricos, ricos, da peça À Manhã. Lembro-me de uma conversa, lembro-me daquela mania que as pessoas tinham em conversar umas com as outras. Havia nas personagens a mesma qualidade de conversa. As gentes da cidade não sabem conversar. Sabem falar, sabem dizer coisas, sabem fazer sair palavras de dentro delas mas não sabem conversar. As gentes desta cidade não sabem nada de conversas, não percebem nada sobre o seu menear. Por isso, as gentes, os habitantes muito evoluídos da cidade, em vez de se renderem aos meneios e trejeitos tão enleantes das conversas, enfraquecem-se e tornam-se a própria sombra da metrópole. Às vezes tentam conversar. Mas apenas despejam palavras umas contra as outras. Embrulham-se de tal maneira que, no final de cada solilóquio, se separam sem terem aprendido nada uns com os outros. O chorrilho de um ditado individual.
Quando não posso mais, refugio-me na valentia dos outros. Fui ao teatro. Fui embeber as vozes distantes das nossas aldeias. Fui ao teatro reaprender a conversar.

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