
Foram os dias de ouro dos meus trinta e três anos. Já nem sei bem que escadas longas eram aquelas, nem sei se fiquei prostrado a olhá-la, enquanto ela adejava um pé atrás do outro em cada degrau. Vou imaginar que naquele céu de Março os meus olhos eram infalíveis e eram a minha esperança de ter na palma da mão um mundo feito só de arestas. Plantado no sopé cinzento das escadas eu acenava, punha o meu melhor sorriso e soletrava Até logo a fingir que ela ouvia. O sol desmanchava-se sobre o aterro de pedra, aquela monumentalidade toda, e nela o meu amor pecaminoso a caminhar para a Faculdade. Um clarão dentro da luz. O seu aceno, dentro do seu corpo torcido, alinhava-se com as minhas sobrancelhas esbugalhadas, que lhe entornavam qualquer coisa, palavras telepáticas «Estou aqui» ou «Vai, não te perco de vista, vai.». Dentro dos dias dourados, aquele momento foi o menos rutilante. Cada vez mais um corpo ligeiro, disforme, a agregar-se sem pudor ao cimento das escadas, cada vez mais eu a ofegar palavras de apelo, de saudade, de intenções predadoras. O meu tempo, diante da pedra e do sol batendo na pedra, tinha terminado.
Defronte destas barras de metal penso: o tempo é sempre mais breve que a eternidade dos homens. Enquanto ponho os meus dedos amplos e sinto neles o ferro inspiro o ar rude da prisão. Nos corredores as pegadas do mal. Nos uniformes a imobilidade do tempo. Nem sei porque recordo, não sei porque insisto na tua lembrança. Já não subsiste em mim o tom morno de Março. Há os meus passos no passadiço de metal, há a minha mão aberta ondulando nas barras de ferro, há a rotina como um monstro debaixo da areia numa praia deserta. Estou preso há mais de trinta anos. Dentro do quotidiano e da aspereza do quotidiano, dentro destas paredes e dentro destas vozes ao longo do dia há noites em que me atrevo sonhar. E hoje, que já nem sei se os meus cabelos estão encanecidos de sobrevivência ou de dor, acordei trôpego a lembrar-me de umas escadas e de letras azuis no cimo de uma fachada com muitas janelas, que diziam Faculdade e diziam, rasgando a calmaria do sol, Faculdade de Ciências. O pior que aqui pode suceder são as lembranças. Pensar que o tempo é mais breve que a eternidade dos homens, e deixar de mastigar, e deixar de querer prantear o uniforme sob um sol mais antigo e contíguo aos muros deste sítio, deste fio de terra. Acordei inchado de terror e de esperança. Não sei porquê. O tempo será mais lento que a eternidade dos homens.
Na bacia da minha cela entornei o meu rosto. Enxaguei trinta anos, procurei com a mão a toalha e dos olhos retirei o teu corpo torcido a meio das escadas, limpei as sobrancelhas e a testa. Com as duas mãos à frente das minhas outras mãos dentro do espelho asseei da memória o teu vestido às flores, a mochila que pendia nas tuas costas. Com o meu rosto malhado e a pingar esse sonho, essa memória, peguei na toalha mofa e abafei o som dos teus sapatos de verniz, crepitando a pedra, escorri da minha pele o teu aceno, à entrada da Faculdade de Ciências. Entrar nesse espaço amplo de descoberta, dizias. E eu pego na lâmina e raspo da minha face essas palavras. Levanto com os dedos esta carne rugosa e expulso do rosto os restos do teu sorriso, bano do meu anoitecer o teu aceno, a tua luz. Outono, Inverno, Verão, Outono, Inverno, Verão.