quinta-feira, dezembro 11, 2003

O dia depois de amanhã

Estou sentado nesta poltrona velha. Agora que sou apenas fragmentos passados e na minha carne já não desliza o mesmo sangue, fecho os olhos. Tenho os meus dedos grossos, palpitando no pó que repousa neste vinil. Descanso as pálpebras sobre os olhos e ouço o som abrupto do entardecer. A nossa música dentro desta calma enferma, Maria. Pertenço ao mutismo desta casa, pertenço aos meus gritos antigos que esbateram nas paredes desta sala, deste quarto, pertenço à velhice destes móveis. Tenho a minha mão sobre a nossa música e sobre o meu rosto jovem perto da tua pele branca, dos teus olhos verdes, perto da tua abundância. Sou feito da planície ocre que vejo da janela. A cerca de madeira, os arbustos secos e o vento nesses arbustos, a cuspir histórias distantes, o praguejar da vegetação, os pássaros em direcção ao sul e os anos que isso tudo demora. O entardecer quando dentro de mim este eco. O céu sem ser sol, sem ser nuvens, sem o meu olhar nele.
Maria, amor, intensidade.
Eu preciso que esta casa me escute. Eu quero que este silêncio te reconheça. Maria. Eu clamo e de mim nada sai. Estou preso a esta poltrona como estou preso às tuas memórias. Maria. Neste mutismo, nesta terra de ninguém e sem ninguém, refugio-me de uma vida de atalhos. Fugir da perda, fugir do dano que dei aos outros, fugir dos canalhas que defendi, fugir da minha imundície, da minha culpa. Todos vós, todos os espectros que arrastam as suas figuras sumidas nesta casa: quero que se vão embora, peço que se vão embora. É este o tempo. É agora a altura de sossegarem e deixarem o meu pensamento livre dos vossos sussurros e do vosso escárnio. Porque preciso das paredes desta casa, porque preciso dos quadros pendurados nas paredes, porque preciso das fotografias, pousadas sobre a estante, porque se penso saudade não quero ouvir assassino, porque se penso desejo não quero escutar cobarde. Não estou louco.
Maria, amor, sofrimento.
Levanto-me. Pego na minha bengala e caminho até ao alpendre. As luzes na colina. As luzes que dizem noite, exclamam frio, uivam morte. Tal como os meus gestos abrandam, a noite abranda. Sento-me. A cadeira de baloiço geme. O soalho geme. Acomodo-me. Tenho a noite em mim, tenho o frio em mim, tenho a morte em mim. Penso, enquanto vejo a lua esconder-se atrás da colina: quando tudo era o teu sorriso, Maria, quando fazia desse sorriso uma razão de vida, Maria, quando já não era um sorriso era uma lágrima, Maria, quando a lágrima se volveu em muitas lágrimas, Maria. Penso, penso porquê, penso porque não há mais nada que possa sentir, não há mais nada que faça sentido. Ponho uma coberta de lã sobre as pernas. Sinto os meus dedos rudes e espessos. Estou no alpendre de minha casa. Estou dentro da noite, da compreensão de todas as coisas que só vivem de noite. Penso, antes que venha de dentro da casa o mesmo murmúrio: afinal, o meu amor, afinal, a lei e a ordem, afinal, a mentira, afinal, o amor, afinal o engano, afinal o crime, afinal, a loucura, afinal, a solidão. Penso na vida a ser um desarranjo no tecido do universo, que se rompeu e caiu do céu numa noite como esta.
Maria, amor, nostalgia.

1 comentário:

Anónimo disse...

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