quinta-feira, dezembro 11, 2003

A caixa

Quando o homem da cidade regressa a casa pesa sempre nele uma película suja. O autocarro, fértil do silêncio das pessoas, segue e deixa-o quase à porta de casa. Quando lhe apeteceu suspirar, como das outras vezes em que chega a casa, conteve-se. Há nele o mesmo fardo, a mesma intenção de fornecer ao mundo um qualquer grito que o alertasse, que o delongasse no ar mais do que dois segundos e lhe permitisse contemplar o seu futuro. Passam os cães, ondulam os pequenos rapazes em cima das bicicletas. Há um céu mesclado com a noite e com todos os fins possíveis. O homem da cidade abre a caixa do correio. Quando entra em casa espalha as cartas como se fossem restos da rouquidão humana. O homem da cidade repara num envelope azul. É um azul que parece ter brilho e vida própria. O homem da cidade não espera nada. Quando desdobra a folha que está dentro do envelope azul, ele sabe que este dia tem outro atalho, outra verdade. Com passos sem fulgor entra na sala e coloca os óculos. Tem na mão uma carta e tem muitos pensamentos dentro dele. A carta diz-lhe lugares, a carta tem frases com outros sítios, com muitos caminhos.
A manhã tem no horizonte os pensamentos da noite anterior. Na rua os bafos azulados à frente da boca das pessoas. O homem da cidade imita um sorriso mas não é um sorriso de verdade que vê desenhado no espelho retrovisor do carro. O homem da cidade tem muitas noites no rosto, o homem da cidade não dormiu a pensar no conteúdo da carta. Curvas e ruas apertadas, subidas abruptas e depois nada, depois uma casa, e logo a seguir uma igreja, um largo, uma praceta e pessoas velhas. O homem da cidade pergunta ao velho da vila onde está, aonde deve ir, por onde é. Segue com precaução. Encontra uma casa antiga e uma pequena caixa. Abre-a. A escuridade, de repente. A espessura de uma onda. O sopro vulcânico do medo. As sombras da casa sobre o seu silêncio a olhar o fundo da caixa. O homem da cidade tem todos os pensamentos em sua volta. São pedaços de carvão, são covas fundas na areia da praia, é o tempo indefinido quase inerte, asfixiado. O homem da cidade com a caixa aberta na mão.
A caixa cai no chão. Ele desassossegado. Ele dor, ele angústia, ele debaixo de um clamor que vem do sangue que corre nas suas veias. O homem da cidade sabe da perda e abana a cabeça. Quando se ajoelha sabe do dano dentro de si. Quando assomam à porta da casa antiga muitas pessoas, ele já sabe que nunca mais poderá sonhar.
Sucedem os dias. Dentro do homem da cidade já não habitam os sonhos. Passam muitos dias e o homem da cidade não sai de casa. Não dorme. Passam semanas. Não sai à rua, nem vê o tempo, nem vê as árvores, nem vê pessoas. Não dorme. Não sossega. Tudo é um escoar depois de uma tempestade. As noites e os dias. A lembrança de sonhar. Não dorme. O homem da cidade a expelir pensamentos e amargura .
Sem olhar para o homem da cidade, o médico dos cabelos grisalhos faz-lhe perguntas. As suas sobrancelhas cerradas. O homem da cidade conta-lhe das noites sobre as noites sobre os seus pensamentos. A sua voz fraca. Diz-lhe que perdeu os sonhos, que foram muitas noites sobre as noites sobre a claridade dos dias. O médico faz humm e escreve. O médico não olha para ele. Escreve. O homem da cidade fecha os olhos e lembra-se da caixa aberta. Uma dor no peito, o golpear na cabeça, os braços flácidos, a fraqueza nos joelhos. Medo, o homem da cidade diz medo e o médico dos cabelos grisalhos ergue as sobrancelhas grossas e diz hmmmmm. Escreve. O homem da cidade queixa-se, noites em claro, enfraquecimento, vozes mudas, mas o médico interrompe-o, diz tome estes comprimidos três vezes por dia. O homem da cidade vai-se embora.
Quando se deita na cama olha para o tecto e vê nele o Presente e o Passado. Não vê o Futuro. Na mesa de cabeceira um frasco com comprimidos roxos. O tecto branco. A noite negra. As veias salientes da mão. O homem da cidade não dorme há muitas semanas. Não sonha, não se lembra das noites límpidas nem dos dias com futuro. Abre a tampa do frasco e engole todos os comprimidos roxos. Quando as pálpebras se fecham é como uma porta que se abre.